"Tertúlia Breve" - Karina Limsi


A sala imensa era cheia da mais diversa gente: Um pai, Orlando, falando de Cartola, castigando um pandeiro cuja pele jazia aos pedaços; uma mãe, Marisa, de vestido solto com um copo de vinho verde pousado na coxa direita, amparado pela mão, um bloco de papel na esquerda, em par com uma caneta canhota cansada de escrever poemas; um tio, Justo, sabedor da economia do Uruguai. Mais à beira do quintal uma prima, Leonor, por quem Fausto se apaixonaria avassaladoramente – porque tinha um olhar de cobra choca, tal qual Capitu no livro – uma tia, Marília, a dançar de um canto a outro em uma calça larga de algodão branco estampado. 

Carmo e Clara, os gêmeos agregados filhos de uma parenta próxima estavam discutindo o comunismo da buena gente que haviam conhecido na última viagem a Montevideo; uma irmã, Irene, pequenina no colo do tio Teodoro que ensaiava verbalizar um cordel que trouxera das férias em Boa Vista da Paraíba, e Paulo Rubens, o primo distante, bonito, sorvendo um mate que não era lá dos melhores, de poucos pilas, pelando, fazendo noutro canto da sala o tipo Rodrigo Cambará com seu violão. Fausto abraçou seu hábito saloio de se constringir quando olhado com curiosidade por gente desconhecida e fitou a mesa num canto do quintal, encostada no muro enlodado recamado de vasos de barro cheios de suculentas. 

Um passo, dois, três, de manso, enquanto fingia mirar furtivamente sobre a mesa o chá de anis, a cachaça de canela, uma cuca bem fresca. Irene saltou do colo que já lhe inquietava no humor danado de criança e correu para Fausto tomando-lhe as trouxas, deixando-o sem ter o que fazer com as mãos.

Eulália sorriu ao ver o menino reconhecendo o primeiro momento dentro de uma família. Ele estava na ponta dos cascos com medo de desagradar. A moça sentiu que não podia tocá-lo mesmo que fosse com um aperto de mão. Tinha vontade de afagá-lo, mas o invadiria de tal maneira que o encolheria ainda mais. Pensou na mãe do menino que chinchada dos berros aflitos da criança o abandonara atrás da lavanderia daquela casa em que ela trabalhava fazia apenas dez meses e onde Fausto passaria uma vida inteira. 

O menino sorriu um sorriso confuso como se seus dentes fossem mastigar o ar. Os dedos igualmente confusos pareciam descascar amendoim torrado na certeza de que a casca daria em farelos, mas tomando o cuidado de não partir em mil a unidade estética da noz. Depois de observá-lo como a um evento galáctico, Eulália cruzou os braços com uma esperança dependurada no canto da boca, seus dedos diferentes dos de Fausto brincavam de se enroscar nas argolas da chave que logo menos cerraria o portão de seus desesperos. 

Os dois se olharam como que projetando um no outro uma cena de filme, novo e antigo, anacrônico, entre o dia em que se conheceram e aquela noite. Caiu no chão um pote com mogango e ninguém soube quem foi. Entrou pela porta um vazio e cada um dos dois congelou seu tempo. Foram empalidecendo de lembranças enquanto os outros na sala não paravam de se mover, coloridos e abanados.

Pouco tempo antes daquele dia, Fausto vira e mexe entrava na sala de Eulália e pedia papel e lápis para fazer um desenho. No início se conheciam bem pouco, entretanto já era notável o perlustrar da moça sobre a mania que o garoto tinha de campear pela manhã, e de tarde, e durante todo o dia de um canto a outro do imenso terreno nos arredores da casa, tanto quanto era perceptível o menino tentando entender a moça a conversar com os butiazeiros e os calangos. Eram amigos desde outras histórias, só podia ser. Outras histórias que não tinham vivido. Era corriqueiro também Fausto chegar e pedir junto ao material de desenho que Eulália pesquisasse em seus livros uma imagem de Deus ou do paraíso, perguntando se Maria era mesmo uma virgem santa, se Deus o estava castigando de algo sério o deixando sem família, se ela cria que o tal Deus acabaria com o mundo algum dia.

Já com quase dezoito anos – idade em que os jovens desvinculados de suas famílias por quaisquer razões devem deixar os abrigos onde foram acolhidos e ir de encontro à vida, autônomos ou não –, nascera em uma cidade fria e imunda e fora enfiado no simulacro de orfanato “Casa de Santa Estância dos Milagres”, cuja dimensão espacial abrigaria a família real portuguesa quase inteira. Crescera sem saber direito d’onde vinha, se brotara das profundezas da estação de tratamento de esgoto fronte a sua janela ou se caíra do céu por ter aprontado demais. 

O conjunto de paredes lilases lembrava um grande hospício, de arquitetura espalhafatosa, a casa de abrigo administrada por religiosas do interior do Rio Grande do Sul, tinha grandes escadas de mármore branco-acinzentado, adornadas de vitrais coloridos e largas janelas de madeira que deixavam Fausto poroso de medo, no ranger descompassado que mais pareciam as vozes das crianças-fantasma que os meninos mais velhos juravam ver andando pela casa durante a madrugada. A casa, cem anos antes, havia sido um orfanato para filhos sãos de pais leprosos, um antro de apartamento social sem precedentes.

A história corrente era de que Fausto era filho da mulher que conhecia como avó – que fora antiga empregada do orfanato – de enrosco com um padre da congregação, e que por força e emprenho de gente da igreja o guri se criara nas coxias dos altares – porque altar também serve de palco a muito ator escolado – coberto do afeto de freiras e beatas, sendo negado pela tal avó como parte da família e totalmente ignorado pela irmã, de quem estava convencido de ser filho. Não havia em toda aquela casa uma história de vida tão bizarra e tão mal contada. Tudo que parecia verdade era mentira e o que era pintado como mentira era mais mentira ainda. O que era realmente verdade só circulava como boato, carregado de maldade. 

Sabia-se de Fausto a candura, o trejeito macanudo, a filosofia que fazia no que dizia sem dar-se conta, os devaneios com os dizeres da bíblia e o talento com os desenhos. De mais, sabia Eulália em contato com os prontuários sua data de nascimento, a história entrecortada de capítulos interrompidos e versículos forjados na imensa casa de pobres coitados filhos de Deus.

Certa feita Fausto caminhava por sobre um aparador de escada perto da cozinha, olhando fixamente o telhado da casa das freiras quando se assombrou do grito “desce daí!” vindo d’outro canto. Achara Eulália que o menino alçava voo para atender ao l’apelle duvide proporcionado pelo vácuo do tempo. A expressão francesa – sendo o francês a segunda língua da moça – descrevia o convite para descobrir o que não se descobre, a chance de tocar o encoberto com a superfície dos lábios e mais do que tudo, a possibilidade de encontrar o sei lá o quê numa curva qualquer da humanidade, ou encontrar o que há depois do “lá” da morte.  O fato é que, não sabendo quem era nem de onde vinha, Fausto podia dar-se o direito de ser ninguém, de escolher seu fim, de ouvir o silêncio gritando sua presença, sentindo a apelação de tantas perguntas cravadas no pensamento, todas advindas de uma existência em pausa. Mas nunca o fez, muito embora esse risco passasse pela cabeça de Eulália.

As dúvidas o faziam engalfinhar as ideias em seus cabelos encaracolados cor castanho camomila e desejar mais que ao ar para respirar um bom desfecho para seu entrevero. Desde o fatídico dia, Eulália passou a buscar jeito de Fausto ir embora da imensa gaiola que era aquela casa, começou a vê-lo mais como criatura que como pobre menino, mais como ser de luz que como pessoa e foi pegando o bicho voador sem procedência com as mãos e ensinando a descobrir o mundo todo de novo, de outro jeito, para além dos altos muros da casa. Nesse “buscar jeito” decidiu que Fausto seria seu parente, faria parte de sua família, que ainda era grande, unida e criadora de pássaros-gente como ele. 

A família de Eulália, por sua vez, fizera-se a pioneira em criar os tão raros pássaros-gente pela vocação particular e específica que cada integrante do núcleo tinha para encantar os bichos, cada um com seu artifício. Era a melhor família para a situação, sem sombra de dúvida – pensou Eulália. Estava decidido. Esperou o passar dos 14 dias que faltavam até Fausto alcançar a maioridade civil, com ânsia e cólera, tratou de guardar a decisão contando ao menino apenas que seu futuro estava garantido. 

Junto aos funcionários da casa borbulhavam os comentários de como Fausto se arrefeceria quando soubesse que para seu caso não havia solução, que ele teria de enfrentar a vida e que no dia de seu aniversário o que poderiam lhe garantir como presente seria o dinheiro da condução e uma vaga num albergue em Porto Alegre. A moça guardava o segredo com o mesmo cuidado com a qual guardava suas economias, pois teria que usar ambas as coisas dali pouquíssimo tempo: abandonaria o emprego no dia em que levasse Fausto de lá.

A decisão não havia sido tomada porque imaginou que ficaria triste, nem porque sentiria saudade, mas, sobretudo, porque desejava a Fausto o que desejaria para si se fosse ele e porque já não suportava olhar aquele lugar alinhavado de mentiras e não respostas, respirar aquele ar de abandono. 

O mês de julho estava montado no melancólico. Havia uma névoa úmida e Eulália sentia nas possibilidades de Fausto de mergulhar em uma nova realidade a sua própria possibilidade. Jamais em toda a vida sentira escorrer pela nuca o vento cortante que era a existência de Fausto por sobre sua existência. 

Era como se Eulália precisasse cuidar daquele menino para safar-se de uma prisão que a aferrolhava. As asas podadas que Fausto tinha por dentro, em seu potencial de pássaro-gente lhe arranhavam a espinha e repuxava os veios de seu pescoço. Deviam ser irmãos de outros céus distantes, de viagens longínquas extracontinentais, extra espaciais, estratosféricas.

Em vinte e oito de julho, Eulália chegou à casa bem depois de seu horário de costume, bateu o cartão sem dar satisfações, deu ao menino os parabéns dos dezoito anos de vida e ordenou que fizesse as trouxas. Foi à casa da providência onde as freiras se concentravam para o terço das seis da tarde, pediu as contas do trabalho prestado, avisou que acompanharia Fausto até o portão para dar-lhe os caminhos que o levariam a Porto Alegre, dirigiu-se a sua sala e juntou seus poucos pertences. 

Chamou o menino de canto já com as trouxas e contou em detalhes que ganharia de presente uma casa, com uma família, vizinhos, parentada. De olhos arregalados o garoto passou a arrebatar-lhe de perguntas, solicitava-lhe informações das mais absurdas e impossíveis de se dar.  Pegaram o primeiro ônibus e foram pelo caminho a se preparar para o grande momento. Ao chegar, Fausto embasbacou do tanto de gente que o esperava e conheceu os jeitos particulares e específicos – de encantar pássaros-gente – de cada um.

Quando botou os pés no alpendre, viu Irene acalmar os grilos com assovios, o pai Orlando a lhe contar histórias de pescar ostras, mãe Marisa falando poemas com as hortênsias, tio Justo compondo valsas no tilintar de moedas velhas, prima Leonor olhando por cima dos ombros alvos, tia Justina bailando os pés descalços com maestria, Carmo e Clara jogando dados cubanos de jogos de azar recitando o manifesto, tio Teodoro escrevendo um caderninho de piadas sobre cariocas e Paulo Rubens reservando-lhe os melhores causos sacanas de chinaredo. Cada um em sua magia recebeu o pássaro-gente num abraço singular:

- Fui eu que derrubei! Eu recolho! 

Disse avô Leonel – referindo-se ao pote de mogango – que até então não havia dado sinal de vida, visto que vinha da vendinha do bairro com um saco de cacetinhos recém-saídos do forno. O vazio que havia entrado pela porta e empalidecido Eulália e Fausto de lembranças preencheu-se sozinho ao se deparar com a alegria dispendiosa daquele avô de boina verde pinheiro, deixando-os repletos de calma e ternura. 

Voltaram a mover-se temporalmente e retornar ao plano presente abandonando aos poucos as agonias das quais não conseguiam falar. Eulália chaveou a porta para que o passado se convencesse de que não seria convidado para os eventos da casa, que seu tempo seria o de uma tertúlia breve, resumida e afoita, duraria o tempo exato que a água passa de morna a fervente na chaleira, como aquelas conversas sobre o governo atual, a legalização do aborto ou o preço da gasolina. 

Fausto, depois de muito ensaiar estava diante de sua história como nunca havia estado. Era mais que um bochincho cotidiano daquelas pessoas, era seu primeiro voo para fora da gaiola centenária onde fora alimentado com o mais esfarelado alpiste, onde cada ano de vida era equivalente a dez, todos pousados em um ninho manjedoura de menino Jesus que o pecado não quis. Saíra da imensa gaiola para trepar num galho firme e fresco, ao ar livre.

Desolhou Eulália, parou de descascar os amendoins imaginários, sorriu um sorriso menos confuso, de trinta e duas nuvens alvas que Irene reconheceu como sendo um baita sorriso de irmão, puxou uma cadeira e tratou de matear num trago rápido.

Concluiu que podia abandonar tudo que o amiudara durante anos, que levaria um tempo para entender o que a vida lhe reservara, que enfim estava em casa, que era de vez parente de Eulália – e ela também teria trabalho para apropriar-se disso –, que havia muita estória que contar das almas aprisionadas no assoalho da capela de Santa Estância, e que a tertúlia estava só principiando. 

Avô Leonel foi botando a fornada com cuidado no cesto pousado sobre a mesa e dando as boas vindas a seu modo – que não era senão o mesmo modo com que opera tudo quanto é avô espalhado pelo mundo – contando uma história de algum neto...

- Bem-vindo a casa nova, guri! Como é que é o nome do meu novo neto?

- Fausto...

- Mas se eu contar, tu não acredita.

- Pois conta!

- Fausto foi um pardalzinho que dei pra Eulália quando ela tinha dois anos. Veio numa gaiolinha linda de bambu, mas a guria era tão fervida que soltou o bicho no quintal e depois chorou que ele não voltava nem com reza. 

...e foi aí que a história começou, de trás pra frente, de frente pra adiante, com o tempo se bagunçando. A tertúlia foi noite adentro, adentro de cada um que lá estava, como se fosse a virtude daquele povo soltar pássaros das gaiolas e ir em busca de que voltassem já feitos em gente. Começou e não sei do fim. Sei que foi a história que ouvi de meu avô, quando ele veio de Porto Alegre mês passado com um pardal numa gaiola pra me dar. Se eu soltei o pardal? Capaz!

Karina Limsi
(texto do Sarau dos Amigos de 26/04/2019)


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