Memórias



por Thiago Pereira dos Santos

1996. Eu tinha onze anos. Estudava na quinta série. E tinha uma vida normal até então. Na verdade, todos os meninos da minha escola já me zoavam e coisas do tipo, simplesmente porque eu preferia brincar com as meninas, mas até então eu realmente era uma criança sem preocupações, pois não estabelecia relação entre mim e o que os meninos falavam. Na verdade, eu não dava a mínima para eles. 

Meu ritual de passagem se daria nesse mesmo ano, mas eu nem imaginava. Não sei precisar em que momento daquele ano aconteceu, mas foi inexplicável. Esses embates com mudança de perspectiva se tornariam persistentes em novos momentos da minha vida. 

Eu estava em mais uma de tantas aulas de matemática. Ainda não tinha me acostumado com aquela história de números negativos que até a quarta série ninguém nos havia contado que existia. Era como ter convivido toda a minha curta existência sem presença alienígena e de repente descobri-los dormindo embaixo da minha coberta. Tipo essa sensação de um novo surreal que experimentamos na pandemia. Parece exagerado, mas dadas as proporções de idade, é possível comparar. 

Enfim, acho que eu havia voltado do recreio e como eu morava no sítio, meu pai costumava ter conta aberta para “comprar fiado” no mercado, na mercearia, etc. Coisas de cidade pequena. Até a quarta série ele me deixava comprar no famoso Chico Lioba, doceiro daquele de carrinho, que vendia todos os dias no recreio da escola os melhores doces que uma infância poderia conhecer. A partir da quinta série, comecei estudar a tarde e ganhei liberdade para explorar a cidade, pois a perua kombi que nos trazia chegava muito cedo, e dava tempo de rodar a cidade toda. Em uma dessas rondas eu havia comprado no mercado o baralho do mico, jogo muito popular naquele ano.  

Comecei a jogar com minhas colegas no intervalo e acabei me estendendo do recreio para a sala de aula. Mais uma aula de matemática, nós sentados no fundão, eu e elas no jogo do mico enquanto o professor explicava algo na lousa: ele simplesmente gritou de onde estava, me ameaçando mandar para fora se não guardasse imediatamente o jogo e prestasse atenção na aula. Acho que pela primeira vez tive o ímpeto de responder e enfrentá-lo, como se eu não tivesse medo dele (é estranho, porque eu não era assim, e minha insegurança nunca me deixou “peitar” alguém). Mas bastou erguer o olhar à altura do olhar dele, para descobrir que aquele dia se tornaria um divisor de águas: descobri enfim porque os meninos me zoavam. E tudo o que eles me diziam fez sentido. Era como se alguém tivesse rasgado a minha roupa e me despido para além da carne. Eles já sabiam o que nem eu mesmo havia percebido. E é uma responsabilidade muito grande adquirir essa percepção de si. Antes dela, eu simplesmente era. Não me importava com o mundo, nem com o que ele pensava a meu respeito. Me descobri sentindo algo diferente de tudo que sentira até então. E era pelo professor de matemática. 

Desde aquele dia, senti a necessidade de policiar minhas palavras, meus atos, meu ser. Era como se eu carregasse dentro de mim o segredo de um crime horrível que eu havia cometido mesmo contra a vontade, crime que me torturava noites adentro. De um dia para o outro tive que amadurecer, aguçar o olhar para esconder os traços do “meu crime”, suprimir o meu eu incubando-o no ventre na esperança de, vencido o prazo de nascimento, o feto morresse antes de se dar a nascer. Me dividi em dois eus: o eu que sentia, tentava entender e confessava a meu outro eu, que para me ajudar a não enlouquecer, a suportar com calma, tentava aconselhar o primeiro e compreendê-lo com compaixão, embora também acreditasse que ele fosse o grande culpado.   Narrar tudo o que eu sentia para mim mesmo, pois acreditava que não poderia confiar em mais ninguém.

Esse silêncio imposto e devoto durou alguns meses, mas é como se a cada dia ficasse mais difícil não poder falar com ninguém sobre meus sentimentos. Eu não tinha todas as respostas. E ver todos poderem falar de si e de sua vida e ter que me calar diante da minha me causava a sensação de inexistir, adicionado à também sensação de que eu não devolvia às pessoas a mesma confiança, pois expunham os fatos e experiências que aconteciam em suas vidas e eu nunca retribuía falando nada pessoal sobre a minha. Eu sentia mil coisas e tinha que exprimir não sentir nada. Era um boneco de plástico sempre com a mesma expressão: está tudo bem! Um ator às avessas: buscava não expressar sentimentos para não receber questionamentos.

Era uma vida de devoção ao silêncio. Mesmo anos depois, após já conseguir falar com algumas pessoas sobre meus sentimentos, continuava a me anular frente às demais. Eu não vivia experiências. Às segundas-feiras todos chegavam cheios de novidades sobre como tinha sido o final de semana, as saídas, os namoros, os beijos, e eu nunca tinha nada para contar. Às vezes eu até saía aos finais de semana também, mas no final da noite todos iam “ficar” com alguém e eu terminava sozinho sentado em algum banco, sem saber como me portar diante dos olhares das pessoas, e esperando a carona de meus irmãos ou minha vizinha para ir embora, pois morava a 4 km da cidade. Para não passar mais por isso, logo venci o medo de andar sozinho no escuro e nesses momentos ia embora a pé para casa, somente para não ter que esperar. 

Mas voltemos àquela quinta série. Na minha sala tinha um garoto que havia sido reprovado e que tinha passado uma temporada conhecendo o seminário, pois acreditava ter vocação para ser padre. Ele não me tratava com a grosseria que os demais meninos tratavam. Ele conversava comigo como uma pessoa normal, e parecia inclinado à compreensão, me despertava confiança. A questão de ele acreditar ter uma vocação sacerdotal me fazia acreditar que, ainda que por compaixão, talvez pudesse me ouvir sem me julgar e me ajudar com o que estava acontecendo, ainda que não concordasse. 

Disse a ele que precisava conversar e ele sugeriu que fosse durante o intervalo. Chegado o momento, nos sentamos sobre um banco de concreto que havia no extenso gramado que circundava a escola, à sombra de imensas árvores de grevílea. 

Formar as frases foi quase impossível. Era como se alguém amordaçasse minha boca impedindo a palavra. Enfim, depois de incontáveis e profundas respirações de ansiedade e medo, contei sobre meus sentimentos e da dificuldade em lidar com eles, usando meu segundo eu para me imaginar na terceira pessoa e tornar menos difícil a confissão. 

Ele pareceu compreender, sem concordar, claro, mas prometeu guardar segredo e tentar me ajudar a me livrar daquele eu indesejado. Só o fato de poder compartilhar isso com alguém me fazia sentir existir, ser visto e embora não quisesse carregar essa bagagem, eu podia assumir o que acontecia para tentar buscar uma solução. 

Mas as coisas não foram bem como eu imaginava. O segredo sobre nossa conversa não durou muito, e nos risinhos de deboche que surgiam, eu sentia o compartilhamento da minha confissão entre os alunos da sala. Aquele tribunal diário tornou-se tortura, ao ponto de me chantagearem a uma exposição maior diante do professor caso eu não os ajudasse com os deveres, já que sempre me dediquei aos estudos e não tinha grandes dificuldades com as atividades. No recreio sempre vinham ao pé do ouvido para falarem o nome do professor, seguido de gargalhadas. Hoje vejo que de alguma forma acabaram por me ajudar, pois o foco de meus pensamentos deixou de ser meus sentimentos para a possibilidade de minimizar o tratamento que davam ao que sabiam sobre mim. Com o passar do tempo e a recorrência desse tipo de acontecimento, lidar com ele me deixou mais forte e disposto a lutar, para não deixar a cargo dos outros os rumos de minha vida.

A situação estava ficando caótica, e, hoje já não lembro o motivo, acabei me desentendendo com uma menina da sala, que também me chantageava. Naquele dia fui incisivo. Não irei mais ceder. Quer falar ao professor, fale. O fato é que eu acreditava que ela nunca teria coragem de fazer aquilo. Mas, ela não só teve coragem, como armou uma super cena para o ocorrido: enquanto o professor dava aula, a sala inteira em silêncio, ela levanta a mão, como quem tem uma dúvida e solta:

- Professor, o Thiago “mandou” dizer que gosta de você! 

O professor, tentando contornar a situação, disse:

- Que bom que ele gosta de mim, fico feliz por isso. Ruim seria se não gostasse. 

Mas ela, decidida a ir até o fim, retrucou:

- Professor, mas ele não gosta de você desse jeito, ele gosta como mulher gosta de homem. 

E a sala inteira gargalhou, de forma que o professor não insistiu, respirou fundo, pediu silêncio, ignorou o acontecido e continuou a aula fingindo que nada aconteceu. Relembrar esse fato, pensando nas palavras certas e buscando lembrar detalhes me fez chorar. Mas naquele dia eu não chorei, pelo menos não na sala. Eu realmente fui forte (e se tivesse uma forma de voltar no tempo e me reencontrar naquele dia, gostaria de dar um caloroso abraço em mim mesmo e dizer que tudo ficaria bem. Acho que por isso que me tornei professor, para dar abraços calorosos em alunos que passam por momentos difíceis e ajudá-los a crer que tudo vai ficar bem). 

Mas naquele momento, apesar de toda a humilhação, iniciou em mim um processo de libertação: comecei a entender que não posso deixar os outros manipularem minha vida e minha história da forma que lhe convém. Aquele dia eu fiquei em silêncio, mas para quem já estava na boca do povo, agora iam ter que me engolir, com muita farinha de mandioca e sem direito a água: que minha existência fosse um verdadeiro entalar: a quem não resistir, que pare de respirar. Se continuar estudando implicava resistir, lá eu estaria.   

Naquele dia também comecei a compreender que para compartilhar alguns fatos e sentimentos com as pessoas, é preciso conhecê-las melhor e nelas confiar verdadeiramente. A não me desesperar para me abrir com alguém. A entender que nem tudo é necessário ser dito. E a partir daquele dia também eu entendi a importância de escrever sobre o que eu vivia e sobre meus sentimentos e anseios para aprender a lidar com eles. É uma pena que eu não tenha compreendido a necessidade de manter tudo o que eu escrevia comigo, para que hoje não tivesse que me esforçar para lembrar detalhes de fatos, confrontar pensamentos que eu tinha, relembrar crenças, expectativas. Por vezes acontecem fatos que nos fazem querer nos desfazer do que escrevemos, justamente para esquecer, pois naquele momento nos é doloroso tê-lo narrado em escrita e correr o risco de vive-lo novamente por meio da leitura. 

Mas sim, naquele ano e nos seguintes eu escrevia muito do que acontecia comigo. Escrevia, lia e relia para tentar compreender da melhor forma possível, me utilizando do papel como forma de me enxergar de fora da situação, dando agora à escrita o título de meu segundo eu, talvez porque escrever parecia menos maluco do que falar comigo mesmo. 

Como eu não queria que ninguém tivesse acesso ao que eu escrevia, protegia como o bem mais precioso meu caderno. No sítio onde eu morava tinha um enorme umbuzeiro com galhos muito entrelaçados, que dificultavam a passagem por entre eles e possibilidade de chegar à copa; proeza que eu conseguia para fazer dela meu lugar solitário em que eu me sentava, escrevia e também guardava minhas anotações: em saco plástico grosso e resistente amarrado de cabeça para baixo na copa do umbuzeiro para que a chuva não o atingisse. Eu era tão sincero em minhas confissões ao caderninho, escrevia com verdade, ternura e poesia. Depois lia e relia e começava a ter orgulho de quem eu era: uma pessoa do bem, que apenas sentia, e sentia coisa boa e desejava ser feliz como qualquer ser humano. Revisitar e novamente preencher o caderno com meus escritos me fez refazer as pazes com Deus e começar a entender que, se ele era amor e se ele me criou, jamais me rejeitaria ou me julgaria pelos meus sentimentos. Assim, adotei uma imagem de Jesus que era da minha avó e que continha a seguinte frase: “Quando te sentires oprimido e a tristeza te envolver, acerca-te de mim. Eu sou a luz cujos raios iluminam a nobreza de tuas intenções e a pureza de teus sentimentos”. A imagem virou o marca-páginas do caderno e mantra que eu repetia todos os dias ao acordar e ao dormir, reafirmando minha existência no mundo. 

Hoje compreendo meu instinto de proteger minhas memórias e me arrependo pelo ímpeto de delas ter-me desfeito em um momento difícil. Acredito na necessidade de criarmos um movimento para que as pessoas voltem a escrever diários. Não só meninas na adolescência, mas todos. Escrever sobre nossa vida nos permite revisitar o passado e relembrar fatos com verdade sem que sejamos traídos pela memória quanto aos detalhes e intenções.

Eu gostaria de poder ler novamente tantos momentos que vivi e senti com riqueza de detalhes, com a minha forma de pensar naquele momento, perceber o quanto amadureci ou mudei de opinião, quais expectativas para o futuro aconteceram e quantas outras acabaram se perdendo pelos caminhos que fui trilhando. Para nunca me esquecer quem eu fui e quem eu sou. Pois o mundo por vezes nos quer nesse movimento, e na maioria das vezes acabamos cedendo e duvidando de quem somos para construir falsos e instáveis eus. Além do que, escrever sua história é a única forma de não a ter contada por outra pessoa, ou que mesmo depois de partir, pessoas que vierem depois saibam quem você foi pelas suas palavras. 

Não escrever sobre a própria história no momento em que ela acontece para que no futuro se torne memória, é saber que no futuro tentará juntar peças de um quebra-cabeça antigo que já pode ter perdido peças ou mesmo se misturado a peças de outros. Compreendo que em parte traio a mim mesmo quando escrevo fatos que aconteceram a tanto tempo neste artigo, pois não lembro ou tenho imprecisão sobre diversos detalhes do fato, e mesmo acabo o analisando sob o meu ponto de vista hoje, o que desbota as impressões. Acho que era sobre isso que Dali pensava ao produzir sua obra, Persistência da Memória. Os signos de tempo derretidos mostram a instabilidade daquilo que lembramos por ser sempre fragmento. 

Sinto falta de conhecer sobre a vida de meus antepassados, e quando vejo tantos familiares partindo, sinto que eu soube pouco de seu passado e muito mais poderia saber sobre os anos em que eu e eles existíamos. Talvez nas escolas deveríamos encorajar os alunos a escreverem mais sobre suas vidas, sem a necessidade de compartilhá-las, mas sim deixa-las para que nunca fossem esquecidas, e garanti-las para a posteridade. Afinal sabemos quantas vidas vieram a ser valorizadas quando não mais eram matéria, e o que deu a oportunidade de rasgar sua efemeridade foram seus relatos insistentes e imortais escritos em papel. 

Ainda sobre as memórias que gostaria de possuir hoje, outra grande lição que aprendi: nunca deixe a cargo de outras pessoas guardar seus escritos, se eles realmente forem importantes para você. 

Nesses mesmos anos de Ensino Fundamental eu escrevia denso volume de textos poéticos, e meus sentimentos mal resolvidos eram fonte inspiradora das produções que todas as minhas amigas disputavam a tapa: uma em especial se intitulava guardiã. Prometeu proteger e guardar a todos, motivo pelo qual foi escolhida e carregava todos os dias uma enorme pasta em que os colacava, me garantindo que estariam salvos por toda a vida. 

Em uma atividade para a escola, entrevistei a minha avó e escrevi todas as suas memórias desde quando saiu de Alagoas ainda menina, até como veio parar na pequena cidade de São João do Pau D´Alho, como se casou, como teve os filhos, as dificuldades, as vitórias. Quando ela faleceu, uma prima pediu para ficar com aquele documento que há anos eu guardava carinhosamente. 

Um dia eu compus a letra de uma música que considerei minha melhor produção, tanto em versos quanto estrutura melódica. Ao terminar de escrevê-la eu suspirei acreditando que tinha uma joia nas mãos: e realmente foi a única. Quis compartilhar com uma amiga que cantava e que me implorou para ficar com a letra, que guardaria como a vida e a tornaria bela canção.

Confiei todas essas produções tão ricas as quais queria ter comigo eternamente. Confiei tanto que seriam protegidas que sequer uma cópia tirei.  Todas essas doações de partes de mim para pessoas que diziam se importar culminaram na mesma resposta: eu as perdi para sempre! Elas não guardaram como haviam prometido! 

O sentimento pelo que fizeram com algo que para mim era tão importante é o de traição. Porque juraram cuidar e brevemente se esqueceram da promessa. 

Esse é um dos motivos para que hoje eu aproveite as oportunidades para escrever sobre minhas memórias: quero me forçar a relembrar os acontecimentos, e quero noticiá-los para que a minha memória não seja mais perdida. Sou alguém comum e com quem poucos se importam com a história. Mas quero deixar a quem um dia quiser descobri-la possibilidades de encontrá-la, por mim mesmo. E assim acabo de eternizar mais um momento que o passado insistia em deixar esquecido.

Thiago Pereira dos Santos

19/03/2023

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