T. S. Elliot
Hoje após as crianças irem para a escola começou a chover, suave e insistentemente, arrumei rapidamente a cozinha e deitei-me na cama lendo o suplemento literário de um jornal.
A chuva, o silêncio da manhã, os cobertores quentes, eram um convite irresistível ao sono. Dormi profundamente. Sonhei um sonho desconexo, confuso, povoado de imagens do passado, de pessoas que passaram por minha vida. Acordei com fortes palmas no portão de casa, fui ainda sonolenta atender. Era um homem que segurava um objeto azul, uma chuva fininha caia suavemente o que me obrigou a convidá-lo a entrar. Ele olhou avidamente para o decote de minha blusa, instintivamente fechei o decote e cruzei os braços a frente dos seios.
- Eu vim entregar suas fotos.
Disse a ele que não tinha tirado nenhuma foto.
- Nós tiramos da senhora, ao final de um curso no ano passado.
Lembrei-me que ano passado fiz um curso de literatura na universidade daqui, após o término do curso foi realizada uma cerimônia de entrega dos certificados, com música, discursos, bebidas, danças e comida. Eu recebi meu certificado das mãos de um professor que eu odiava com um ódio coletivo, pois o tal era famoso por ofender alunos e alunas com sua prepotência, arrogância e ar de superioridade. A mim ele nunca havia ofendido, entretanto o vi ofendendo vários colegas. Acho que o ódio que sentiam dele havia me contaminado.
Lembrei também que durante a entrega dos certificados vi o pipocar de vários flashes, pensei que eram as famílias dos colegas, jamais imaginei que uma empresa especializada estivesse nos fotografando.
Peguei o álbum azul e abri, estremeci e minha reação instintiva foi jogá-lo ao chão. A mulher que estava na foto tinha o meu cabelo, minha pele, meus olhos, meus dentes, mas não era eu. Eu não estava tão velha como aquela mulher, ela era feia, velha, triste, horrível. Seus olhos eram parados e o olhar era antigo, sua pele era amarelada e cheia de dobras no canto dos olhos, testa e em volta da boca. Em uma foto em que sorria, seus dentes eram amarelos e grandes, pareciam as garras de uma fera. Até a pequena verruga que eu tinha discretamente no queixo, naquela mulher da foto aparecia opulenta, vermelha, nojenta. Aquela mulher não era eu. Em algumas fotos colegas do curso apareciam sorridentes e bonitas, estavam abraçadas a mulher que o homem dizia que era eu.
- A senhora está muito bem nas fotos, às vezes tiramos fotos das pessoas que ficam diferentes da pessoa real, no seu caso isso não aconteceu, a senhora na realidade é igual nas fotos. Disse o homem ao meu lado, olhando as fotos das páginas que eu virava com dedos trêmulos.
- Eu não quero essas fotos. Disse bruscamente
- Por quê? Perguntou o homem espantado
- Porque não posso ficar com elas, não tenho dinheiro para pagá-las. Eu mentia e o homem sabia disso, pois olhou longamente para minha casa, para o carro, a moto e o barco na garagem, para as jóias nos meus dedos, braços e orelhas, para meu pijama de seda e balbuciou:
-Nós dividimos em várias prestações, o pobre homem, quase implorava.
- Não quero, afirmei decidida.
- A senhora terá que dizer pelo menos três motivos, pra eu dizer pro meu patrão, senão ele vai brigar comigo. Tive dó do pobre homem e imaginei seu patrão gritando que ele não tinha sido persuasivo o suficiente para convencer a cliente a receber as fotos.
- Meu marido morreu, meu filho está doente e eu perdi o emprego. Inventei três motivos falsos para justificar minha recusa. O pobre homem escreveu rapidamente o que eu disse em um bloquinho amarelado, apertou minha mão frouxamente e foi embora encurvado.
Senti-me aliviada, estava envergonhada, com o fato de ele achar que aquele trapo de mulher se parecia comigo.
Corri para o meu quarto, apaguei a luz e fiquei pensando em como eu havia mudado. Procurei avidamente álbuns que tivessem fotos minhas de tempos idos, desde que me casei não mais tirei fotos. Nas que encontrei no álbum eu estava sorrindo. Linda, alegre, fresca, eu era essa moça, não aquela mulher horrível das fotografias recentes. Essa moça não tinha marcas na pele, aquela mulher tinha uma triste estória escrita no rosto.
Olhei-me no espelho, desliguei a luz central e liguei a luz indireta do abajur, há muito tempo não me olhava no espelho com a janela aberta, à luz do dia e do sol. Gostava de olhar no espelho na penumbra, agora o retrato de mulher que eu via no espelho era intermediário entre a moça sorridente e a mulher triste.
Saí da frente do espelho e fiquei pensando em como minha aparência física mudara, envelhecera. Aquela mulher do retrato não era a mulher que eu achava ser eu.
Lembrei-me do fragmento de um texto de Simone de Beauvoir em que ela diz que a diferença entre a idade e algumas doenças é que há doenças que você sente e ninguém vê, enquanto que a idade todos veem, mas você não sente.
Era com aquela mulher do retrato que meus filhos conviviam?
Era com ela que meu marido dormia?
Era com aquela mulher que as pessoas na rua falavam quando pensavam estar falando comigo? Eu estava escondida dentro daquela mulher triste?
A minha pessoa transformada em imagem era aquela mulher?
Diante da descoberta não fiquei triste, nem desesperada, apenas levemente pensativa. Entrei novamente dentro dos lençóis e antes de adormecer ouvindo o suave barulho da chuva que caia naquele final de manhã, lembrei-me de uns versos que traduziam o que senti ao ver naquela manhã o meu retrato real de mulher:
“Eu mulher, em pleno inverno existencial da minha desesperança, trago fresca a menina, que indiferente e imune à inexorabilidade do tempo, permanece intacta dentro de mim”.
Andradina, primavera de 1998
Edilva Bandeira (texto do Sarau dos Amigos de 14/06/2019) |
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