Ela



Por André Santana


Ela acordou ainda mais cedo do que estava acostumada. E olha que ela sempre acordava muito cedo! Afinal, a apresentadora do principal programa matinal do país precisa estar a postos quando o sol ainda nem pensa em dar as caras.


Não apenas porque ela tinha que estar com o cabelo e a maquiagem impecáveis. Mas também porque ela fazia questão de participar de todos os processos que envolvem a produção do programa. Ela colaborava com a pauta, com o roteiro, com a pesquisa, e até com a direção.


E ela fazia isso com muito prazer. Respeitada por todos, ela tinha o melhor roteirista e o melhor diretor da TV em sua equipe, mas gostava de trabalhar ao lado deles. Eram um time! Ela e aqueles rapazes simpáticos, inteligentes e tão empenhados em fazer um programa que agrade o público e os anunciantes. A sintonia da equipe refletia nos números de audiência. O show matinal era um sucesso!


Mas naquele dia ela se sentiu na obrigação de acordar mais cedo ainda. De repente, ela sentiu que aquela segurança adquirida dos anos de profissão não estava mais presente. Pelo contrário! Bateu nela uma insegurança inexplicável! Ela sentiu uma responsabilidade diferente. Sentiu que aquele dia não era um dia qualquer.


Ela chegou cedo à emissora. Passou pela maquiagem, pelo cabeleireiro, pelo figurino. Com o copo de café em mãos, estudou o roteiro. Era o roteiro que havia ajudado a elaborar no dia anterior, num trabalho em conjunto com o roteirista. Era um ótimo roteirista!


Mas aquela insegurança teimava em abater seu coração. Ela leu aquele texto e não se reconheceu. Não reconheceu o trabalho que sempre fizera questão de colaborar. Eram as suas ideias, sem dúvida, mas não eram as suas palavras. Ela não conseguia se enxergar falando aquelas coisas em voz alta. O roteiro estava impecável, mas algo estava fora do lugar.


De repente, as luzes do estúdio se acenderam e o diretor chamou. Ela tomou o café num gole só e deu mais uma passada rápida de olhos no roteiro. Mas, ao ver uma lixeira na entrada do estúdio, inexplicavelmente, ela jogou aquele belo roteiro no lixo. E entrou no estúdio de mãos nuas. O coração bateu mais forte.


Contagem regressiva, ela estava no ar. E aquele roteiro que ela jogou no lixo ressurgiu, no teleprompter à sua frente. Ela abriu o programa: “Olá, bom dia! Hoje é dia 8 de março, dia internacional da Mulher, e o nosso programa será especial!”.


Foi a única frase que ela leu do roteiro. Dali em diante, ela fez o programa no improviso. Ela disse tudo o que queria dizer. Tudo o que discutiu na reunião de pauta, e até mais. Mas foi diferente. Ela falou com o coração. Falou de seu lugar. Falou de um jeito que o roteirista dela jamais iria entender. Falou de um jeito que o diretor dela jamais compreenderia.


Ao final do programa, a equipe a aplaudiu. A produtora, com lágrimas nos olhos, disse a ela que o programa nunca foi tão bom. O diretor apareceu, ressaltando o recorde de audiência daquela edição. Champanhe foi servido. Todos comemoraram o êxito.


Mais tarde, sozinha em casa, ela sorriu. Afinal, ela tinha a certeza que sua fala bateu direto no coração das espectadoras. Elas eram diferentes, mas estavam todas no mesmo lugar.



André Santana é jornalista e escritor. Formado em Comunicação Social, pós-graduado em Marketing e Gestão Cultural, atualmente cursando graduação em Letras. Escreve sobre cultura para sites e presta assessoria de comunicação para projetos culturais. É autor do livro "Tele-Visão: A Televisão Brasileira em 10 Anos" e organizador da antologia "Ilhados".

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