Letras



Por Fabiana Alves


Dandara nasceu menina branca na certidão de nascimento, desconectada de seu fenótipo pardo. Para a família, era morena. Preta não. Negra, nem pensar.


Na escola particular, era menina preta, neguinha, pois destoava da cor hegemônica.


Assim ela seguia sua vida, entre comparações, senões, subjetivada pelos seus adjetivos, que variaram ao longo da vida, dependo sempre dos diferentes observadores. O mundo era bem confuso e excludente. Recebia sinais claros de onde seria seu lugar na sociedade. A tv ajudava ratificando os postos e destinos possíveis.


Aos 06 anos, ganhou o Macaco e a Mola, e aprendeu a ler. Ficou maravilhada ao compreender que consoantes e vogais combinadas codificavam uma trama muito engraçada. Aos 10, a Droga da Obediência, de Pedro Bandeira, lhe abriu as portas para a desobediência ao status quo. Não aceitaria facilmente os rótulos e destinos traçados. Instintivamente, começara a procurar pares para a empreita.


Aos 14, chorou horrores com Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco, confirmando sua impressão de que o amor é um sentimento mortal.


Leu de tudo. Riu, chorou e teve esperança. As letras lhe deram repertório, vivências de mundos alheios ao seu. Era possível.  


Primeira da família na faculdade, compreendeu logo que, naquele universo, era preta, e mesmo quando as cotas ainda não eram política pública, sua presença era, de certa forma, cota que o destino encarregara de vingar. Novamente, os livros que lera ao longo da vida, era passaporte que garantia sua estada naquele universo tão alheio a sua história, pois já estava habituada a ser estrangeira e observadora em histórias de outrem.


Ao longo da vida, encontrou pares na vida real e nas letras, foi um processo gradual e lento. Na vida adulta, finalmente se permitiu olhar no espelho e ver sua negritude. Reivindicar sua raça tem sido uma luta, e o colorismo explicou muita coisa.


Sempre buscou referenciais que lhe fizessem sentido. Encontrou alguns nomes, como sua preferida na juventude, Simone de Beauvoir, cujas pautas ainda distantes de sua realidade, eram plausíveis e inspiradoras. Mais recentemente tem vivenciando uma experiência nunca antes experimentada, conheceu mulheres maravilhosas como Ângela Davis, Lélia Gonçalves, Conceição Evaristo, Carolina de Jesus, só pra começar, com histórias e textos que finalmente lhe faziam sentido de fato. Não se via como estrangeira nesses universos.


Dandara sente que vive e faz parte de uma revolução, na qual as letras têm sido ferramenta propulsora.


Fim – Parte I


Fabiana Alves é especialista em Gestão Cultural, Comunicóloga, Pedagoga e estudante de Letras.


Postar um comentário

2 Comentários

  1. Show de organização de palavras! As letras monocromáticas sempre foram libertadoras (borrachas) das multicores expressas nas estampas em papeladas dos cadernos sociais! Dandara escreve a própria história trilhando os caminhos dos (as) ousados (as) "escrevedores".

    Edilson José de Almeida

    ResponderExcluir
  2. Ao mergulhar no texto me afoguei em lágrimas de alegria e tristeza. Perfeito. Que orgulho. Você é perfeita!

    ResponderExcluir