Por Ariane Daruichi
“Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos,
e que na hora em que a justiceira mata, ele não está mais
nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso,
ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado.
Na hora de matar um criminoso – nesse instante está sendo morto um inocente.
Não, não é que eu queira o sublime, nem as coisas que foram se
tornando as palavras que me fazem dormir tranquila, mistura de perdão,
de caridade vaga, nós que nos refugiamos no abstrato”.
A epígrafe que dá início a este texto manifesta minha inquietude quanto a “Mineirinho”, arauto de minhas próprias fragilidades. Matéria caríssima. Quero contar sobre a experiência de perpassar o fluxo das palavras.
“Mineirinho” é uma crônica assinada por Clarice Lispector em 1962 cuja narrativa é a morte de um criminoso, executado com 13 tiros pelas forças policiais, apesar de não se tratar o texto de uma crônica policial. É um conto sobre Justiça ou sobre o sentimento de justiça e a percepção de seus elementos na composição do senso comum e crítico, a partir da violenta medida contra a figura da real personagem marginal. O conto é classificado como jornalismo jurídico, de status jurisliterário.
Enquanto lia, fiquei pensando como supor o transgressor de forma própria e também alheia. Um feito enérgico sobre olhar e ver.
A Literatura, assim como o Direito, é sobre a vida, e Mineirinho é manifesto desta interface que propõe o direito não apenas “na”, mas “através” da literatura. A tessitura desse corpus literário me fez pensar no sentimento de justiça como constituinte da maneira de se compreender a lei, impermeável a convulsões que, de tão atônitas, são ingênuas. Admito que – com alguma presunção – também pensei nas capacidades de dinamizar as estruturas que tornaram o Mineirinho um ritmo cirandado entre assassino e assassinado.
Diante da exposição de meu pensar, vejo que a afirmação de Antônio Cândido se cumpre. Aqui, a “literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas”.
Transmutar o “Ler” em “Lei” é sentimento inócuo e raramente perigoso. Imaginava que encerraria este texto agradecendo ao direito temporão de ecoar o estado das coisas puras e desamparadas que há em Mineirinho, mas não! Pouco importam as erudições. É necessário que se saiba o que somente Adília Lopes tem a ensinar: um direito nunca se agradece.
Este texto é dedicado a aqueles e aquelas cujo revides isolados me escampam aos dedos, mas que fazem do abstrato, o seu refúgio.
Referências:
LISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: ______. Para não esquecer. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p. 126.
CANDIDO, Antonio. Direitos Humanos e literatura. In: A.C.R. Fester (Org.) Direitos humanos E… Cjp / Ed. Brasiliense, 1989. p. 113.
LOPES, Adília. Justiça. In: ______. Bandolim. São Paulo: Assirio & Alvim, 2016. p. 64.
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Ariane Daruichi é advogada, especialista em direito urbanístico e ambiental (PUC/MG) e defensora dos direitos culturais.
1 Comentários
Parabéns....
ResponderExcluirAriane
Dê Maria ivanilda.