A Semana de Arte Moderna e seus impactos

 Por Thiago Pereira dos Santos



Chocar o público.

Transgredir.

Quem está pronto para ser incompreendido e rejeitado?

Nesse jogo, quem avança, quem fica pelo caminho e quem recua?

Há parâmetros? Barreiras ou excessos que não devem ser transpostos? Antes de serem transgredidos, já estavam postos? Ou foram criados justamente para isso?

Eles não foram os pioneiros da arte e literatura moderna. Não deixaram de ser eurocêntricos e de se guiar por suas tendências, não deixaram de lado a inspiração do que já existia e do que já conheciam (ou acreditavam conhecer) para criar algo inteiramente novo. Mas ainda assim sua obra é original, mesmo copiando tendências, estilos e até formas de contestar a arte e a literatura acadêmica.

Quando falamos dos impactos da Arte Moderna, devemos nos ater ao hoje, ao passado ou à linha histórica que nos liga? É incrível pensar em como, em cada momento da história, esse fato poderia ser descrito de uma forma diferente. Penso que na celebração de seu centenário, vivemos o cíclico retrocesso em que as sociedades modernas (pensando a modernidade a partir de Descartes) brincam de roda gigante dançando a ciranda tocada pela força política vigente.

Mas ainda bem que nosso foco de análise é a Arte e Literatura, segmentos da sociedade que, a partir do período histórico de nossa reflexão, não parecem preocupar-se tanto com a aceitação social, afinal de contas, não é de hoje que pretendem chocar, transgredir, questionar e que acumulam vaias de incompreensão frente às possibilidades de explicitar os temas que a sociedade tradicionalista e conservadora tenta varrer para debaixo do tapete enquanto desrosqueia as lâmpadas que lhe trazem luz. É disso que trata a Semana de Arte Moderna.

Mas, a Semana de 22 realmente promove os rompimentos e as rupturas a que se propunham e bradavam seus idealizadores? Foi um divisor de águas? Entendo que tenha sido mais um ritual de libertação do que uma total ruptura com o passado.

1922. O Brasil buscava uma identidade nacional ao passo que, após o abolicionismo, sua população se tornara plural social e culturalmente. Também preparava as grandes comemorações do centenário da independência. Arte e literatura, como bens da cultura erudita, estavam ao alcance apenas da elite. Não que o restante da população não se manifestasse artisticamente por meio de sua cultura, mas essa, naquele momento, não era considerada Arte. Também havia formas de literatura “marginal”, ainda que com acesso restrito aos poucos leitores pobres, visto que naquele momento histórico o analfabetismo no Brasil girava em torno de 77% segundo censo de 1920. (FERRARO, 2002).

Nesse contexto, um grupo de amigos organiza uma exposição artística e literária que tinha a pretensão da vaia: Sim, eles já sabiam o que iriam enfrentar. Não é possível mensurar a que ponto estavam preparados para isso, mas ainda que houvesse o medo e o receio, esses não foram motivos para recuo. Como parâmetros, havia duas exposições que aconteceram na década anterior e que causaram diferentes reações: a primeira de Lasar Segall em 1913, que acabara de desembarcar no Brasil e fez sua primeira exposição em São Paulo, apresentando obras com influência do movimento impressionista, as quais tiveram considerável aceitação do público e crítica. A segunda exposição, da pintora Anita Malfatti, em 1917, que foi veementemente criticada, inclusive pelo famoso artigo escrito por Monteiro Lobato (1917) e publicado no jornal O Estado de São Paulo, intitulado: A propósito da Exposição Malfatti. As pinturas da artista traziam características do expressionismo alemão, com o qual teve contato nos anos anteriores, quando morou em Berlim. Tais críticas chegaram a influenciar negativamente a produção de Anita e suas escolhas estéticas nas obras dos anos seguintes, mas, ainda que abalada pelas críticas, não deixou de aceitar o convite do amigo Mário de Andrade para que também expusesse no grande evento.

Diferente dos pintores impressionistas franceses que promoveram a chegada da Arte Moderna a partir da exposição de suas obras no Salão dos Recusados em 1863 em Paris, quase 60 anos depois, no Brasil, ela é anunciada a partir do grande reduto da arte parnasiana e conservadora: O Theatro Municipal de São Paulo. A ideia era romper de vez com o passado. Mas a história nos mostra que é impossível esse rompimento abrupto e definitivo, como o próprio Mário de Andrade refletiu em artigo que escreveu em 1942 para o jornal O Estado de São Paulo em comemoração aos 20 anos do evento:



... educados na plástica "histórica", sabendo quando muito da existência dos impressionistas principais, ignorando Cèzanne, o que nos levou a aderir incondicionalmente à exposição de Anita Malfatti, que em plena guerra vinha nos mostrar quadros expressionistas e cubistas? Parece absurdo, mas aqueles quadros foram a revelação. E ilhados na enchente de escândalo que tomara a cidade, nós, três ou quatro, delirávamos de êxtase diante de quadros que se chamavam o "Homem amarelo", a "Estudante Russa", "A mulher de cabelos verdes". E a esse mesmo "Homem Amarelo" de formas tão inéditas então, eu dedicava um soneto de forma parnasianíssima... Éramos assim. (ANDRADE, 1942)



Dessa forma, a Semana de 22 também não rompe de vez com o passado, nem lhe dá as costas, pois como em qualquer âmbito social, nossas vivências e as experiências pelas quais passamos tornam-se parte de nós, e não há como negá-las ou a elas se opor de forma imperativa e automática: fazem parte do nosso inconsciente. Porém, não se pode negar, que já a partir de Segall e Malfatti, inicia-se o processo de questionar o belo e a mera representação do real na arte no Brasil, bem como também na literatura questiona-se o belo pelo belo e em ambas a forma perde importância para o conteúdo.

A Semana de Arte Moderna de 1922 foi essencial para a potencialização desse contexto como aponta Mário de Andrade (1922) no prefácio de Pauliceia Desvairada, obra literária produzida como representação desse novo momento da arte e literatura no Brasil: "Infiro que o belo artístico será tão mais artístico, tanto mais subjetivo, quanto mais se afastar do belo natural. Outros infiram o que quiserem, pouco me importa."

Este fator subjetivo é o que justamente Monteiro Lobato (1917) questiona em sua crítica à exposição de Malfatti e “chama de sugestão estrábica de escolas rebeldes”: poder representar o que sentimos, distanciando-se da arte realista, que, representando a realidade, era incapaz de manifestar o que era invisível aos olhos e comovia apenas por sua beleza estética. Plasmar sentimentos em uma obra de arte, importando-se cada vez menos com o figurativo e se necessário, concentrando-se no abstrato, na força comunicativa e representativa das cores. Ao mesmo tempo, é a ideia que move as formas de expressão, verbais e não-verbais: a mensagem que impacta, que faz refletir, é o verdadeiro produto final.

Roberto Schwarz (1998) aponta em seu texto A carroça, o bonde e o poeta modernista: a literatura “[...] produzida a partir desse período não consiste em romper com o passado ou dissolvê-lo, mas em depurar os seus elementos e arranjá-los dentro de uma visão atualizada e, naturalmente, inventiva, como que dizendo, do algo onde se encontra: tudo isso é meu país.” É o momento de questionar. Colocar em xeque. Levar o espectador/leitor contestar o que é posto. Impõe crítica social. Estabelece relações temporais, políticas, culturais, questiona padrões. Claro, lembremos que tudo isso é uma construção histórica dentro desses cem anos.

A Semana de Arte Moderna não é um rito que demarca a passagem das trevas para a luz. Antes demarca territórios e propõe possibilidades de atravessá-los, expandi-los, ultrapassá-los.

Há controvérsias de que, por conta da Semana de Arte Moderna de 1922, a história deixou de dar crédito a fatos e pessoas ligados à Arte Moderna cujo trabalho acontecia em outros pontos geográficos do Brasil, ou mesmo ligados à temporalidade, sendo fomentados antes da grande exposição. Mas temos que concordar que o som ecoa na mesma intensidade do grito. Assim, embora devamos considerar esses aspectos e perspectivas ao observar ou “supervalorizar” a Semana de Arte Moderna de São Paulo cem anos depois, não devemos deixar de admirá-la como um evento de força, de pessoas audaciosas e propostas a mudar, com o desejo de transformar, e dispostas a pagar o preço por isso. Essa força que mobiliza, que realmente transforma, é rara, e destarte, precisa continuar sendo exaltada, como marco de que nós também não só podemos, como temos o dever de fazer o outro refletir, promover conflitos existenciais, colaborar para superação ou manutenção de paradigmas.

Assim, seria anacronismo de nossa parte tentar apontar temáticas que deixaram de ser abordadas naquele evento ou mesmo que não tenham sido abordadas da forma crítica que hoje percebemos, afinal de contas cem anos de análise, discussões e evoluções do pensamento nos separam. Mas entendo que a grande contribuição da Semana de Arte Moderna de 1922 é sua grande vontade de iniciar o debate social que hoje nos é tão caro. É questionar o senso comum e o que está posto para uma abordagem crítica, contestadora e que destarte necessitou utilizar-se de novas técnicas, novos formatos, para alcançar esses novos objetivos (utilizando-se por vezes e de forma proposital de elementos que a sociedade desvaloriza para deixar seu recado).

Temos que lembrar que o evento propunha estabelecer a Arte Moderna no Brasil e que ela já acontecia na Europa. Não era uma criação, mas uma adaptação. E a partir desta, a ação criativa quem determinaria os caminhos percorridos, como filhos que aprendem com os pais, mas em determinado momento seguem seu próprio caminho.

O fato é que o evento e seus desdobramentos continuam a reverberar cem anos depois. Segundo Mário de Andrade (1942), “O passado é lição para se meditar, não para se reproduzir.” As discussões são outras, as preocupações são outras, as visões de mundo mudaram, mas não podemos esquecer da importância histórica de iniciar os debates e abrir espaços para novos posicionamentos. A Arte e a Literatura têm importância inquestionável para a crítica e o debate social e demarcar territórios faz-se necessário diariamente. E é muito importante olhar para o passado e perceber a Semana da Arte Moderna de 1922 não como o início de novas tendências, mas como um abrir de portas para novas possibilidades de observar, questionar e enfrentar os modelos sociais.

Cem anos depois continua sendo necessário replicar e ressoar gritos de liberdade como esse, pois continuamos sendo regidos por uma sociedade tradicionalista e tencionada a controlar e orientar as condutas. Expressar-se é materializar ao outro ideias e ideais para levá-lo a crer que sempre existirão outras possibilidades. Desejo que o seu grito dê continuidade a ideias e ideais orientados para a liberdade e para a diversidade.


Referências

ANDRADE, Mário. Pauliceia desvairada. São Paulo: Ciranda Cultural, 1922.


ANDRADE, Mário. O movimento modernista 20 anos depois. Disponível em <https://outraspalavras.net/poeticas/o-movimento-modernista-20-anos-depois/>.Acesso em 01 mar. 2022.


FERRARO, Alceu Ravanello. Analfabetismo e níveis de letramento no Brasil: o que dizem os censos? Disponível em <https://www.scielo.br/j/es/a/r9WxgNdxFvRLXYfbxCLyF5G/?lang=pt#:~:text=Nos%2060%20anos%20que%20v%C3%A3o,mais%20(de%2016%2C5%20para>.Acesso em 01 mar. 2022.


LOBATO, Monteiro. A propósito da exposição Malfatti. O Estado de São Paulo, São Paulo, SP, 20, dez. 1917. Edição da noite, p. 04. Disponível em <http://brasil.estadao.com.br/blogs/arquivo/a-proposito-da-exposicao-malfatti-por-monteirolobato/> Acesso em 01 mar. 2022.


SCHWARZ, Roberto. A carroça, o bonde e o poeta modernista. In: JACKSON, K. David. A vanguarda literária no Brasil: Bibliografia e antologia crítica. São Paulo: Vervuet, 1998.


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