Risinho Modernista

Por Ariane Daruichi

Diz a lenda que ao ser procurado para uma entrevista, depois de profunda insistência do entrevistador, o poeta americano Ezra Pound¹, que por muito tempo mantinha imenso silêncio, concordou em dizer uma única palavra que considerasse significativa como mensagem: CURIOSIDADE -  Conselho aos jovens.

Quero falar da curiosidade que emerge com ares cosmopolitas, na contramão provinciana, no útero da cidade de nome santo e de vibrações profanas. Da curiosidade como um levante do espírito da modernidade, da curiosidade de figuras pachorrentas e das oceânicas confluências entre a beira da água da precoce Pagu até as sujidades implexas do urbanismo de Mário de Andrade.

Penso na curiosidade que existiu em um lugar que se sobrepõe a experiência do lugar, em um espaço de inquietude, experimentação, criatividade e, sobretudo, que fez possível uma linguagem livre das vicissitudes da matéria, porque “a linguagem admite a forma dubitativa que o mármore não admite.

Eu sei que sabem, os modernistas, o quanto de linguagem -  derretida como a vela do rei Oswald - ainda escoa pelas luxuosas escadarias de mármore italiano do Theatro Mvnicipal de São Paulo. “Num país medieval como nosso, quem se atreve a passar os umbrais da eternidade sem uma vela na mão?

Essas velas, acesas pela linguagem, encontram labaredas nos “terreyros antropófagos” lá no Parque Bixiga ou aqui neste pensamento que parece ter sido arquitetado pela moderna Lina Bo Bardi: cheio de ideia de espaços inacabados e facilmente permeável à presença humana.

O aproveitamento da experiência se realiza espontaneamente, porque penso também na curiosidade como ambivalência do impulso moderno, que integra a memória e identidade de cidadão coletivo do novo tempo, alumiado pelas candeias à palma das mãos porque não se pode errar no óbvio: a renovação não há de ser confundida com a falta de memória. 

E é por isso que Caetano Veloso contra a memória fonte do costume e pela experiência pessoal renovada, entre ruídos de guitarra elétrica, nos diz verdades tropicais: a Carmen Miranda não sabia sambar.

 Não desejavam -  tropicalistas e modernistas- os prazeres das horas tardias e silenciosas.  O prato que lambe o paladar tropical, temperado de éticas inconformistas, serviu, antes, verborrágicas bocas modernas.

Se só a antropofagia nos une, quero com as minhas dentições antropofágicas que seguram primaveras inteiras, devorar de Caetano a Leonardo DiCaprio, mas também a Pêra de Marília, entoando o mesmíssimo grito festivo com que as bacantes evocavam Dioniso. 

Acontece que embora eu saiba da linguagem e que só o que vale é o abufelamento, do verbo abufelar, meu inconsciente não sabe da existência de gramáticas, nem de línguas organizadas e eu que soy loca por ti, América, por força de meu /r/ retroflexo que decorre do come-come colonial (suponho), deixo escapar pelos cantos um risinho modernista quando pronuncio em bom inglês “Tupi, or not Tupi?  That is the question.


1.  Poeta e crítico literário americano considerado um dos principais representantes do movimento modernista do início do século XX.


Referências:

Paulicéia Desvairada – Mário de Andrade (1922);

Manifesto Antropófago - Oswald de Andrade (1928);

O Rei da Vela – Oswald de Andrade (1937); peça adaptada por Zé Celso para o Teatro Oficina com a primeira montagem em 1967 e a segunda em 2017;

PAGU – livre na imaginação, no espaço e no tempo – Lucia Maria T. Furlani (1999).


Ariane Daruichi é advogada defensora dos direitos culturais e humanos. Apaixonada pela vida das cidades.  Costuma ter uma vela na mão.

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