Somos feitos de memórias literárias

Para Carlos Nicolino da Cruz e Doralice da Cruz (in memorian)


Por Marcos da Cruz

Meu avô paterno é baiano. Sempre teve boas histórias para contar aos netos. Uma vez contou o caso do lobisomem que entrou em seu sítio e devorou de uma só vez sete galinhas. Outra vez contou também, quando um menino mal educado não quis desvirar o chinelo e sua mãe quase morreu e, ainda nos advertiu: “se tiver alguém que caiu na fogueira e um chinelo virado, é melhor desvirar o chinelo antes e depois socorrer a pessoa”. Outra vez contou para nós, os netos, como meu tio acabou parando no hospital por tomar leite e depois comer manga e proibiu eu e meus primos de comer manga e tomar leite, ou vice-versa. 

São essas memórias literárias orais, escritas ou visuais, únicas e particulares que vão nos moldando enquanto pessoas. São essas memórias que nos impulsionam a acreditar na vida, amar, viver, sonhar, sentir medo... Eu por exemplo, morria de medo de sair na quaresma e encontrar um lobisomem. Quando criança cheguei a brigar feio com um amigo que virou o meu chinelo e não queria desvirar, fiquei com medo da minha mãe morrer, ou, se tomava leite e comia manga no mesmo dia, parecia que a voz do meu avô me alertava e logo pensava: será que posso morrer? 

Meu avô foi uma pessoa que não teve muitas oportunidades em estudar. Mas, tinha um coração tão grande e histórias extraordinárias que trago até hoje comigo. Essas memórias me constituíram enquanto pessoa. Foi por causa dessas memórias literárias orais, dele e de minha avó Doralice da Cruz que passei a ler tudo que encontrava. De alguma forma suas histórias me motivaram a buscar outras possibilidades de vida... Foram as memórias literárias orais que me fizeram conhecer o poder da escrita e constituir outras memórias além dos casos contados pelos meus avós. 

Lembro que na infância com pouco recursos materiais e condições precárias li o livro “O Mágico de Oz de Frank Buam” – em resumo para que não leu, é uma história onde um ciclone leva Dorothy e seu cachorro Totó para terra de Oz e lá ela ajuda alguns amigos, tais como: o leão a ter coragem, espantalho a ter um cérebro e o homem de lata a ser um homem de verdade e no final, Dorothy estava ajudando a si mesma. Quando criança desejei que um ciclone me tirasse de diversas situações, que tivesse amigos que pudessem me ajudar a realizar meus sonhos.

Na adolescência, querendo um pouco de liberdade, sair para conhecer um pouquinho do mundo, li o romance “Fernão Capelo Gaivota de Richard Bach” que praticamente é a história de uma gaivota chamada Fernão que abandona seu bando, aliás o seu bando que só ficava no porto comendo resto de comida... Fernão decidi abandonar seu grupo para aprender voar mais alto e mais longe e assim descobre uma jornada incrível sobre si e seus limites. Já na vida adulta, foi Clarice Lispector em seu livro “A Paixão Segundo GH” que me ajudou a entender a falta, a perda de identidade no sentido de amar. 

Todos temos memórias literárias. De um romance que leu. Uma história que ouviu. Uma letra de música que fez você lembrar do seu primeiro amor e trouxe sensações tão antigas que isso te confortou.  Quem nunca se emocionou lendo um livro? Ou chorou quando a mocinha da história perde o amado? São essas histórias que mantêm vivo em nós momentos únicos e delicados que experenciamos. São as memórias literárias que nos permitem voltar no tempo e reviver emoções. E são as memórias literárias, também, que quando estamos cansados, sem sentindo... são elas que nos indicam caminhos. E acima de tudo, são essas memórias literárias que nos trazem afeto, conselhos e sentimentos. 

Agora me diga: quais são suas memórias literárias? 

Marcos da Cruz

16/04/2023

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