Toda rua tem seu leito de rios apressados

 Por Ariane Daruichi


Foto: Douglas Pedrosa

Isso aqui é uma expedição e os cães que ladram não tem endereço.

Pensava de contar das memórias de uma andarilha urbana, de uma observadora apaixonada e dos encontros entre seres humanos com detalhes variados. 

Uso de memórias como forma de constituir relações geográficas com a imensidão e são muitos os gestos pitorescos para descobrir como é a responsabilidade de estar em comunidade em vários dos tempos. 

Tempo. Tempo das coisas, das cidades e das pessoas. Por vezes, o trabalho consiste apenas em vê-lo passar, como quem fita a organicidade de um caminhante traçando linhas no percurso do vazio. Linhas do desejo, linhas fronteiriças, linha de pipa, linha de pensamento, linha do mar...

Acontece, que embora eu quisesse falar da memória das superfícies, do chão e dos vestígios da passagem, li essa semana sobre uma cidade que vem sendo devorada pelo mar, e eu não sabia que o mar tem fome de engenharias.  

Passei a pensar nos vilarejos das profundezas do mar, quase invisíveis para quem vive na superfície, e nas ondas levando inscrições do tempo pra cá e pra lá, às vezes à tona e de novo para o fundo. Isso era enredo para Jorge Amado e a história do boi que vadiou por 5 dias, e depois se lançou nas águas para fugir de um confinamento, também. “Aboio das marés”, mas Jorge teria pensando em um nome melhor.

A memória convertida em águas. Aliás, foi na atividade da FLIS desse ano que um texto de ímãs calhou de ser “rasgar a inércia/ apressem rios/fluindo em âmago colo”.  Naturalmente, água em seu papel fundamental de correnteza. Estranho mesmo foi uma parede de ímãs falando bonitezas.

De novo, penso no boi. É que as coisas fora de seus lugares tornam ainda mais curiosas aquelas linhas que imaginamos construir.

E se essa cidade fosse engolida por oceanos, as vidraças, os estilhaços e alvenarias todos desfeitos. Mas a molécula da água por ser diamagnética, preservaria os textos-ímãs no saguão da festa. Peixes e escafandristas dançariam com as palavras. Então, a memória é exatamente essa coisa que fica entre os dedos quando toda o resto da areia já escoou.

- Eu sou memória das águas.


Ariane Daruichi

23/04/2023


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