Por Edilva Bandeira
As sociedades são retratadas pela história e transfiguradas pelas narrativas, poemas, canções e imagens que compõem as atividades artísticas. Nessa perspectiva, a literatura atua como representação do cotidiano humano, da nossa trajetória histórica. Por isso, história e literatura estão relacionadas, retratando realisticamente e ficcionalmente nossas vivências permeadas de dores, alegrias, paixões, tragédias e belezas.
O autor é o demiurgo, organizador desse universo da ficção como representação do real. Platão, ao falar do demiurgo o nomeia como artesão divino, organizador do universo, ele não tem poder para criar factualmente a realidade, mas usando a imitação de modelos eternos e perfeitos pode organizar a matéria caótica da qual o mundo é construído. Essa analogia serve para pensarmos o papel do criador de ficção, que usa a matéria do mundo composta por nossas tragédias existenciais para organizar o mundo ficcional criado por ele.
“Primeiro há fragmentos, lembranças, experiências, textos, quando estes se organizam, desencadeiam-se o trabalho da imaginação e desponta o autor como fundador de mundos imaginários, diz SCHULER, (1989, p.73.)
O conto “Eveline” que será analisado nesse trabalho é uma produção artística organizada e produzida pela mente criativa do escritor irlandês James Joyce. O conto faz parte da obra Dublinenses, publicado em 1914.
A personagem que dá nome ao conto é uma mulher oprimida pela autoridade e violência do pai, perdida entre memória e saudade da mãe e do irmão que morreram, que vive um relacionamento amoroso com um homem que irá embora em busca de trabalho em outro país e quer levá-la com ele.
A análise desenvolvida nesse trabalho foca em questões femininas, como opressão, falta de perspectivas de vida e medo, que eram vivenciadas no momento de produção do conto (1914) e mais de um século depois, continuam a ser pertinentes, discutidas e vivenciadas. Evidente que nesse espaço temporal de produção do conto e dias atuais, muitas lutas foram empreendidas em relação às questões sociais enfrentadas pela mulher, no entanto ainda hoje elas vivenciam esses impedimentos, opressões e determinações de suas trajetórias pessoais.
O objetivo do trabalho é analisar o conto observando como as vivências, enfrentamentos e silenciamentos que estão presentes na construção da personagem feminina dialoga com questões sociais e individuais enfrentadas pelas mulheres na sociedade em que vivemos. Como a protagonista Eveline, vive e enfrenta às dificuldades em seu cotidiano opressivo e cheio de memórias.
A análise fundamenta-se no conceito de epifania que aborda memória e silêncio e também na tese de Ricardo Piglia, de que um conto sempre conta duas histórias.
A condição feminina no contexto social do conto
Conhecer o contexto histórico de uma obra é fundamental para compreendermos o texto literário como objeto artístico de um tempo histórico, vinculado, impregnado do “espírito do tempo” (wettergeist) do seu momento de produção.
Mikhail Bakhtin (1992, p. 363) diz que “o autor está preso a sua época”. Sua produção está subordinada, influenciada pelo momento histórico que o autor vivia ao produzi-la. Literatura e história, estão interligadas, compartilhando um léxico comum, como aponta Marisa Lajolo (1994, p. 21) em reflexão que faz sobre a relação entre contexto histórico e texto literário.
O texto literário como documento da história ou a história como contexto que atribui significado ao texto literário são caminhos que podem colidir no congestionamento da mão única por onde se enveredam. Nesse sentido, reflexo, expressão, testemunho, articulação, influência e termos similares são o léxico que costuma relacionar o texto literário ao que há de coletivo e social. Para quem e para além de suas páginas. (LAJOLO, 1994, p. 21)
No conto “Eveline”, encontramos esse léxico comum de que fala Lajolo, que se manifesta como reflexo, expressão, testemunho, articulação de uma época, tanto nos recursos literários usados pelo autor, quando na contextualização histórica da situação vivida pelas mulheres no início do século XX, época em que o conto foi escrito.
Encontramos no conto características e inovações criativas próprias de James Joyce, como fluxo de consciência, paralisia na (in) conclusão das narrativas, voz do narrador misturada a voz da personagem, silêncios, memórias, epifanias. Encontramos também uma personagem construída sob camadas de impedimentos sociais e interditos, vividos pelas mulheres da Irlanda do início do século XX, espaço ficcional onde se desenrola a narrativa.
As lutas que as mulheres enfrentavam nessa época, sejam trabalhistas, familiares, morais, sociais, aparecem no conto, criando uma atmosfera carregada de memórias, indecisão e medo.
Alguns momentos históricos foram marcantes para a trajetória das lutas emancipatórias. Acontecimentos como a Revolução Industrial e as guerras mundiais repercutiram diretamente na mulher, modificando seu papel social. Esses acontecimentos que se sucederam a partir da segunda metade do século XVIII são um marco para uma série de mudanças acerca da questão feminina. (ASSIS e SANTOS, 2017, p. 2)
O espaço reservado a mulher ainda era o doméstico, o processo de emancipação feminina, sofria retrocesso por essa carga de obrigações domésticas imposta à mulher. No conto encontramos Eveline se debatendo entre o emprego em uma loja e as “obrigações” da casa, que consistiam em lavar, cozinhar, limpar, fazer compras, cuidar dos irmãos pequenos e do pai, continuando assim, o trabalho doméstico e cansativo da mãe que morreu e deixou essas responsabilidades para ela.
A realidade social do momento histórico, adentra o texto ficcional, mostrando uma mulher (a protagonista), presa, indecisa, amedrontada, buscando sua libertação da opressão de um homem, seu pai, trocando-a pelo suposto amparo ou nova opressão de outro homem, Frank, o namorado.
Antônio Candido na obra A Literatura e a formação do homem (1972), apresenta a literatura como expressão artística que relata a experiência humana, sendo profundamente influenciada pelo contexto social em que está inserida e foi produzida.
(...)Na medida em que nos interessa também como experiência humana, não apenas como produção de obras consideradas projeções, ou melhor, transformação de modelos profundos, a literatura desperta inevitavelmente o interesse pelos elementos contextuais. Tanto quanto a estrutura, eles nos dizem de perto, porque somos levados a eles pela preocupação com nossa identidade e o nosso destino, sem contar que a inteligência da estrutura depende em grande parte de se saber como o texto se forma a partir do contexto, até constituir uma independência dependente (se for permitido o jogo de palavras). Mesmo que isso nos afaste de uma visão científica, é difícil pôr de lado os problemas individuais e sociais que dão lastro às obras e as amarram ao mundo em que vivemos. (CANDIDO, 1972, p.804)
No início do século XX, o lar era ainda o centro das famílias, mesmo ocupando esse espaço e ganhando títulos como “rainha do lar”, “florzinha do papai” e outros, a mulher estava submissa aos desejos e poder do homem, sejam eles pais, maridos, irmãos, patrões, padres, pastores, professores e outros. Essa opressão era responsável por doenças como neuroses e outros sofrimentos femininos. O conto aborda sutilmente a doença que culminou no enlouquecimento da mãe de Eveline. A doença da mãe e o sufocamento da vida que leva, cercam a personagem com a convicção de que só um homem, no caso Frank, poderia libertá-la.
Raffaella Baccolini (2009, p. 6) afirma: “os ataques de Joyce aos hábitos e as convenções, situam-no no ataque do século XX à memória, de forma que esse era um ataque ao valor do hábito, da repetição, da lembrança de algo do passado”.
O dilema da personagem ao decidir abandonar o papel de filha, irmã, funcionária, para partir em busca de outra vida ao lado de um homem, representa as dificuldades enfrentadas pelas mulheres em diferentes épocas para se libertarem da opressão que a sociedade impõe e da determinação de como a mulher deve ser e viver sua vida
O leitor é conduzido pelos labirintos da narrativa, acompanhando memórias e observando as ações de Eveline e ao final não sabe qual decisão ela tomou, se ficou ou se partiu. O conto apresenta uma crítica sobre a condição feminina de opressão e silenciamento e aponta para busca da emancipação, o que no tempo histórico em que o conto acontece, a emancipação feminina raramente era bem sucedida.
A epifania da memória e do silêncio no cotidiano da personagem
Em sua origem etimológica a palavra epifania é de origem grega e quer dizer “manifestação divina”. É uma palavra importante no cristianismo, é mencionada no episódio no qual é revelada a natureza divina do menino Jesus aos pastores que o foram visitar. Define uma súbita percepção de entendimento, da essência espiritual de algo ou alguém.
O conceito de epifania em James Joyce é considerado uma característica central em sua concepção artística de literatura, permeia a sua produção literária. É entendida como um momento de súbita arrebatação estética, profana, poética, existencial. Se configura como um instante em que a vida banal e trivial é iluminada por algo poderoso que deslumbra e encanta quem experimenta, quem vive o momento epifânico.
Na construção da obra de Joyce a epifania corresponde a uma proposta técnica, criativa, de escrita, constituindo-se em objeto de estudo e debate por parte da crítica.
O conto Eveline é narrado em 3ª pessoa, em voz narrativa que se mistura à voz da personagem principal. É a descrição das memórias de Eveline que inicia o conto. Ela está sentada à janela, olhando a noite, sentindo-se cansada, recordando pessoas e lugares do seu passado. “Sentou-se à janela vendo a noite invadir a avenida. Encostou a cabeça na cortina e o odor de cretone empoeirado encheu-lhe as narinas. Sentia-se cansada. (...) O sujeito que morava no final da rua passou a caminho de casa; ela ouviu seus passos estalando na calçada...” (JOYCE, 1992, p. 43) Os verbos usados no início do conto, (sentou, vendo, encostou, encheu), apontam para a passividade da personagem, para a falta de movimento, de prostração, paralisia de Eveline.
A narrativa continua com as recordações da personagem sobre a mudança do lugar em que estava. “Tempos atrás havia ali um terreno baldio onde eles brincavam toda noite com os filhos dos vizinhos” (JOYCE, 1992, p. 43). Na sequência narrativa, a memória que vem é das pessoas do passado de Eveline, algumas permanecem, outras morreram ou foram embora. “Apesar de tudo considerava-se bem feliz naquela época. O pai dela ainda não estava mal e além disso, a mãe ainda estava viva”. (p.43). Todos esses fatos aconteceram há muito tempo, no presente Eveline tem 19 anos, a mãe, está morta, o irmão Ernest está morto, o outro irmão Harry está sempre ausente viajando, o pai está cada dia mais violento e ela planeja fugir com Frank, um marinheiro que conheceu há pouco tempo com quem está namorando. Todas essas memórias vêm à tona enquanto Eveline está sentada à janela esperando a hora de fugir com Frank para Buenos Ayres.
Segundo Baccolini (2009, p. 4) essas memórias de Eveline são carregadas de elementos como família, religião, obrigações, responsabilidades, que paralisam e inquietam a personagem.
A memória do sofrimento e opressão em que a mãe vivera, faz com que Eveline acredite que seu destino será igual ao da mãe. A memória não oferece a ela reflexão sobre o passado e autoconhecimento no presente, oferece angústia e certeza da inexorabilidade de um destino opressivo. É possível afirmar que no conto a memória provoca além de paralisia, silenciamento, medo e dominação da protagonista.
Conclusão
A imaginação criadora é influenciada pela história, ideologia e experiências humanas. Os objetos artísticos são produtos de conflitos, desejos, interesses pessoais e sociais, estão carregados da alegria, dor e beleza de nossa condição humana. O espaço ficcional é palco de manifestações estéticas e ideológicas, presente nas narrativas, representadas aqui pelo conto Eveline.
(KOTHE, 1987, p. 8) afirma que arte e ideologia não são elementos excludentes, não há arte sem ideologia, não há obra de arte que não seja ideológica e não há ideologia que não possa ser aproveitada, utilizada na produção artística. Mesmo que se queira que a arte seja completamente pura, isenta de interesses camuflados.
Dublinenses, o segundo livro escrito por James Joyce coloca o autor dentro das discussões que abordam memória e consciência histórica sobre opressão feminina, partidas de personagens de sua terra natal, a Irlanda, para o exterior, amores impossíveis, obsessões e epifanias. No conto estão presentes partidas, (seja mudança ou morte) silenciamento e opressão feminina, mulher vivendo sob a autoridade e violência masculina.
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Edilva Bandeira
17/05/2023
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