O útero como representação do feminino no poema "Vocação"

 por Edilva Bandeira


Heloisa Buarque de Holanda, pesquisadora e professora de teoria crítica da cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), organizou em 1976 a antologia 26 poetas hoje, com obras de poetas, homens e mulheres, que estavam à margem das grandes editoras, produziam suas obras artesanalmente e as divulgavam e vendiam. Eram chamados geração marginal ou geração mimeógrafo.

A   antologia revelou nomes fundamentais da poesia brasileira como: Francisco Alvim, Roberto Piva, Zulmira Ribeiro Tavares, Waly Salomão, Ana Cristina Cesar e outros, cujas obras são atualmente objeto de leitura, estudos e pesquisas. Para comemorar os 45 anos da publicação da antologia poética que marcou os “anos de chumbo” da ditadura militar, Heloisa Buarque de Holanda volta à cena, organizando uma nova antologia, As 29 poetas hoje (2021), que mapeia jovens poetas de todo o Brasil.

Para estabelecer um fio que conecta essas jovens poetas, a pesquisadora recorreu ao legado poético de Ana Cristina César, reconhecida pela crítica como uma das mais importantes poetas brasileiras. 

Também pesquisadora, Ana C. teorizou no texto “Literatura e Mulher: essa palavra de luxo”, publicado no nº 10 da revista Almanaque (1979). sobre o que seria essa “poesia de mulher”. O texto abordava as antologias de Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa. Ana C. debate a ideia de poesia feminina baseada na adjetivação dos críticos da época, todos homens, que chamavam as produções de Cecília e Henriqueta de poesia do inefável, tênue, sensível, que privilegia o pudor, o velado, o inviolável.

Ana não estava desmerecendo Cecília e Henriqueta, o que interessa para Ana Cristina é como a crítica induz a leitura dessas poetas consolidando a noção de poesia de mulher no Brasil. Ana adverte: “por trás dessa concepção fluídica da poesia, um sintomático calar de temas de mulher” (HOLANDA, 2021, p.10)

No auge da terceira onda feminista, Ana Cristina afirma que onde se “lia flor, luar, delicadeza e fluidez, leia-se secura, rispidez, violência”. Naquele momento a mulher que aparecia na cena era a moça livre, a prostituta, a lésbica, os temas interessantes eram, o palavrão, a trepada, a masturbação, o orgasmo, o protesto, a marginalidade. 

A poesia seca, dura, ríspida e violenta de Ana Cristina César influenciou, o que Heloisa Buarque de Holanda chama de poesia atual, marcada pela voz de mulheres, uma escrita que não deve calar seus temas, nem se isolar em fórmulas poéticas ou políticas, deve ser uma escrita livre, à deriva.

Com a seleção de poemas e poetas publicadas nessa obra As 29 poetas hoje, a autora/organizadora estabelece uma ligação entre o projeto estético de Ana Cristina Cesar e das jovens poetas no que se refere o que é ser mulher e qual a expectativa de ser mulher na contemporaneidade.


Diante da onda feminista que nos surpreende hoje, me fiz uma pergunta inevitável: existe uma poesia feminista? Por outro lado, uma segunda pergunta atropela primeira: seria possível nomear uma poesia como feminista? Não estaríamos promovendo um reducionismo perigoso? Não me sinto confortável chamando essa nova poesia de feminista. Prefiro pensar no impacto do feminismo nessa nova geração de mulheres. Prefiro pensar numa poética que, agora passa a ser modulada por uma nova consciência política da condição da mulher e do que essa consciência pode se desdobrar em linguagens, temáticas e dicções poéticas. (HOLANDA, 2021, p. 24).


A pesquisadora argumenta que de forma arbitrária a obra poética de Ana Cristina Cesar é referência para o que ela chama de jovem cânone da poesia brasileira produzida por mulheres, cujas figuras principais são: Angelica Freitas, Marília Garcia, Alice Sant´Anna, Bruna Beber e Ana Martins Marques.

Ainda para Holanda, essas produções não refletem apenas a produção individual de cada poeta, há um éthos comum que se expressa conectando uma poeta a outra. Ela chama atenção para o diálogo estabelecido entre essas jovens vozes poéticas, argumentando que ele é composto por muitas vozes “fora do eixo heteronormativo e branco: são vozes lésbicas. vozes negras, vozes trans, vozes indígenas e interseccionais”.


Como nos movimentos feministas jovens, a nova poesia de mulheres não reflete apenas a produção individual de cada poeta. Ela se faz em coro, em ressonâncias. Lembra e não lembra o “poemão” que Cacaso identificou na prática da poesia marginal dos anos 1970. Lembra, porque como Cacaso observou, vista em conjunto, a poesia daquela hora parecia um só poema. Da mesma forma, ao ler esse segmento da poesia feminista de mulheres hoje, também sinto um éthos comum (sem falar de certa dor comum), que se expressa numa sucessão de ecos ligando uma poeta a outra. (HOLANDA, 2021, p. 31).


Outro ponto em comum é a forma de quebra de silêncio dessa poesia, as maneiras de publicação e divulgação por meio de iniciativas articuladas e coletivas, via blogs, hashtags, sites, coleções, editoras independentes, antologias produzidas pelas próprias autoras. Ainda como divulgação dessa poesia são articuladas leituras e performances públicas em saraus e slams, espaços de divulgação vigorosa dessas produções.

A poeta cujo poema será analisado nesse trabalho, é Jarid Arraes, de 29 anos, que participa da antologia as 29 poetas hoje, com os poemas “vocação”, “a torre”, “mormaço” e “patas vazias”. O poema analisado será “vocação”.

O que se pretende é analisar como a voz lírica do poema de Jarid Arraes organiza seu discurso dentro da ideia do “Espírito do tempo” (Zeitgeist) e da “Cosmovisão” (Weltanschauung ) do seu momento de produção. 


A voz feminina e a cultura presente no poema 


Jarid Arraes (1991) nasceu em Juazeiro do Norte/CE. Em 2012 começou a publicar em blogs de temáticas femininas, negras, de gênero e direitos LGBT. Em 2015, publicou em edição independente seu primeiro livro, As Lendas de Dandara, que foi traduzido para o francês em 2018 e publicado na França. Em 2017 saiu Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis (Pólen), em 2018 Um buraco com meu nome (Ferina), em 2019 Redemoinho em dia quente (Companhia das Letras).  

O poema “vocação” (assim mesmo, com inicial minúscula, procedimento da obra em que o poema foi publicado), evoca questões do corpo feminino, tendo como imagem simbólica o útero.

vocação

um corpo que carrega

um útero

é submetido ao decreto

da incondicionalidade 

é submetido ao destino

de um útero 


os grandes sacerdotes

e os pequenos

as figuras de autoridade 

como as telas

como os corredores brancos

todos ensinam 

o percurso do útero 



que haja vida

porque um útero crescido

- às vezes nem tanto

deve fazer brotar vida

pernas braços olhos

espírito 


um corpo que carrega

um útero

precisa de um espírito

que o preencha

o espírito forçado entre as pernas

enfiado enfiado enfiado

obrigatório 


um útero é um sarcófago

de uma mulher

é a máquina 

inquebrantável

de uma mulher 


uma mulher é um útero

que carrega algo

há dias em que gente 

há dias em que chumbo


O poema foi publicado originalmente no livro Um buraco com meu nome (2018, p. 22). A palavra Vocação, que dá título ao poema, deriva do verbo “vocare”, que no latim significa “chamar”, significa também inclinação para o sacerdócio, para a vida religiosa, é entendido também como habilidade que influencia e conduz o indivíduo a exercer determinada profissão. 

Alfredo Bosi no texto Sobre alguns modos de ler poesia: memórias e reflexões (2003, p.27), afirma comentando o percurso da poesia na perspectiva de Jakobson, presente no ensaio “À la recherche de l´essense du langage” (1965), que a palavra poética é símbolo que cumpre uma vocação milenar de dar inteligibilidade de nossa relação com o mundo. 

O título do poema é palavra simbólica que se coaduna com a afirmação de Bosi, da palavra poética como um símbolo que nos faz compreender nossa relação com o mundo. O título remete metaforicamente a um chamado da mulher para uma vocação? A vocação de mãe? Pois, é no útero que a vida se desenvolve e a pessoa possuidora do útero é a mulher. A vocação de ser mulher? Em que o útero desempenha papel fundamental na regulação de ciclos da vida feminina como menstruação, fertilidade e menopausa. É da natureza feminina essa relação com o útero.

A natureza precede a cultura e a performa e enforma. A poesia é obra da cultura: nasce e vive na história dos homens. A cultura que é memória e trabalho, evoca e invoca a natureza, trazendo à tona da consciência os seus movimentos inconscientes. A cultura dá um sentido a natureza, a poesia atribui-lhe múltiplos sentidos, pois se faz nas fronteiras móveis do mundo e do sujeito. A poesia transforma a natureza em paisagem, dá-lhe alma, dá-lhe voz. (BOSI, 2003, p.234) 


É a voz poética contida na palavra vocação que oferece “pistas” do que será encontrado no poema. O E-Dicionários de termos literários de Carlos Ceia, traz a palavra vocação “do latim eclesiástico invocātĭō, ōnis, termo que se refere aos atos de chamar, convocar, suplicar, implorar socorro e pedir proteção e/ou auxílio a seres ou entidades sobrenaturais, divindades”. Nessa perspectiva o título do poema é significativo e sugestivo.


O útero representa todas as mulheres, com ou sem o órgão físico. Através deste ponto simbólico, que é a casa da alma feminina, parimos a nós mesmas, gestamos sonhos e concebemos projetos. Lá existe uma morada onde todas as mulheres puderam, podem e poderão se acolher, é o lugar de onde todos nós viemos. (STRACK, 2003, p. 28)


O útero como representação simbólica da mulher está presente em várias culturas, há uma ordem de benção e maldição que envolve o útero da mulher e que se reflete em sua família e até a nação a qual a mulher pertence.

STRACK, (2003, p.7) afirma que em suas pesquisas sobre a simbologia do útero, encontrou 160 expressões para o órgão, tanto como diabólico, quanto, como sagrado.

Na iconografia do Egito e da Babilônia, cerca de 1.500 anos a.C. o útero aprece como imagem totêmica, abençoada. Nos textos bíblicos escritos entre os anos de 1.500 e 500 a.C. o útero é representado como elemento simbólico dentro do imaginário cosmológico e antropológico da época. Ele é um espaço de domínio da divindade, que pode abençoar ou amaldiçoar o útero para que ele se abra para fecundação ou se feche estéril.

O eu lírico do poema “vocação”, insere o útero na composição do poema, não como espaço sagrado, dominado por divindades, mas como espaço onde se exerce violência e opressão contra a mulher.


As significações do poema


A composição gráfica do poema é estruturada em 6 estrofes de versos livres e irregulares. A primeira e a terceira estrofes são compostas de 6 versos (sexteto ou sextilha); a segunda e a quarta de 7 versos (sétima ou sextilha); a quinta de 5 versos (quinteto ou quintilha); a sexta de 4 versos (quadra ou quadrilha).

O vocabulário é formal, culto, o ritmo é irregular, em que os acentos dependendo da leitura feita podem mudar de lugar. O ritmo é forte e dinâmico, em que os versos estão no presente do indicativo, o que remete a ideia de proximidade dos acontecimentos inesperados do poema. O poema dialoga com a liberdade rítmica modernista em que as composições apresentam vários tipos de versos e estrofes. A palavra útero aparece em todas as estrofes em diferentes posições, meio e fim dos versos produzindo um ritmo pesado, denso, levando o discurso poético para uma cadência agônica, angustiada, pesada, que culmina com o último verso do poema que é finalizado com a palavra chumbo, metal pesado que contamina o solo, água, ar e alimentos.

No nível lexical a categoria gramatical predominante, são os verbos de ação (carregam, ensinam, fazer, brotar, preenche, etc.), o que confere dinamismo a sequência de desenvolvimento do poema. Os substantivos são concretos (corpo, útero, sacerdotes, autoridades, telas, etc.), indicando particularização do fazer poético, direcionado a um tema caro ao eu lírico, que é a carga imposta a mulher por ser portadora de um útero.

Os adjetivos (grandes, pequenos) presentes nos versos 1 e 2 da segunda estrofe, caracterizam os sacerdotes (substantivo) como figuras de autoridade, que “ensinam”, “determinam o percurso do útero” numa clara ironia ao poder estabelecido pelas autoridades religiosas e laicas sobre os corpos das mulheres. O adjetivo “branco”, no quinto verso da segunda estrofe, caracteriza o substantivo “corredores”, numa referência aos corredores de hospitais, percurso percorrido pelas mulheres no processo de maternidade.  “Crescido”, adjetivo presente no segundo verso da terceira estrofe, caracteriza o substantivo útero, as palavras “útero crescido”, representando gravidez. Na quinta estrofe o adjetivo “inquebrantável”, aparece no verso posterior em que se encontra o substantivo “máquina”, caracterizado por ele.  O verso “máquina” inquebrantável”, representa a potência mecânica (humana) e duradoura da mulher no enfrentamento da sua condição de mulher portadora de um útero.

No nível sintático o poema não apresenta pontuação, o que lhe confere uma leitura sem pausa, com pouca entonação, visto que os sinais de pontuação representam pausas e entonação na fala, além de serem responsáveis pela coesão e coerência do texto, pelo estabelecimento claro de sentido. É todo escrito em letras minúsculas, não há no poema nomes de pessoas ou cidades e como não existe pontuação, as regras de pontuação da gramática normativa não se aplicam.

Há um encadeamento entre os versos (enjambement), em que um se liga ao seguinte para completar o sentido, como:  verso 1- “um corpo que carrega”; verso 2- “um útero” (primeira estrofe). Esses mesmos versos são repetidos na quarta estrofe. O verso 2 da quinta estrofe “de uma mulher” tem seu sentido completado pelo verso 1, “um útero é um sarcófago”,

No nível semântico encontra-se figuras de linguagem como: comparação, que aparece nos versos 4 e 5 (segunda estrofe), “como as telas”, como os corredores brancos”. 

A metáfora está presente no verso 1 (quinta estrofe), “um útero é um sarcófago” em que o vocábulo “sarcófago”, representa, túmulo, tumba, lugar em que somos e estamos enterrados, sepultados antes do nascimento. Há uma outra presença de metáfora no verso: 4 (sexta estrofe), “há dias em que chumbo”, em que o peso do que a mulher carrega no útero é pesado como chumbo. A metonímia está presente no verso: “uma mulher é um útero” (sexta estrofe), em que a pessoa mulher (o todo) é representada pelo órgão útero, (a parte).

As figuras de linguagem citadas acima, representam imagens do discurso poético que por meio da analogia se manifestam no poema, como afirma BOSI (1988, p. 28).” Pela analogia, o discurso recupera no corpo da fala, o sabor da imagem. A analogia é responsável pelo peso de matéria que dão ao poema as metáforas e as demais figuras.” 


A “organização da superfície física” é a matéria significante do poema com todos os seus jogos de figuras e retornos, é o conjunto dos procedimentos. A “outra superfície” é a que se nos dará quando apreendermos o sentido pleno do texto. Mas então, será preservado, no nível da memória e da sensibilidade, também aquele primeiro e volteante co-sentido. (BOSI, 1988, p. 28).


No decorrer do poema há uma “organização da superfície física”, que se inicia na primeira estrofe, no segundo verso em que aparece a palavra “útero”, repetida sete vezes no poema, o que se configura como possível intenção do eu lírico, em fazer dessa palavra juntamente com a palavra “mulher”, o centro do discurso poético. 

O verso inicial diz: “um corpo que carrega um útero”, o que já carrega de significados a palavra “útero”, como se o corpo que o carrega, não possa escapar de um inexorável destino social e humano imposto pelas “figuras de autoridade”, grandes e pequenas. É como se o mundo determinasse desde o nascimento o percurso, o destino da portadora de um útero. “um corpo que carrega um útero”, precisa ser preenchido por um ser vivente, um espírito, esse ser/espírito, na perspectiva do poema é “enfiado” na mulher violentamente, às vezes sem o seu consentimento. O útero aparece como imagem de um sarcófago, lugar sombrio, escuro, túmulo de carne viva da mulher, “máquina inquebrantável” de dor e resistência, em que há dias em que o ser que carrega no útero se transforma em chumbo, tamanho o peso da agonia e opressão que se abate sobre a mulher. 

A imagem metafórica que é atribuída a palavra útero, é matéria profundamente significativa do poema. BOSI (1988, p. 45), afirma: “Quanto mais denso e belo é o poema tanto mais entranhado estará em seu corpo formal o “mundo” que se abriu no evento e se fechou no claro-escuro dos signos”.

O poema de Jarid Arraes é novo, forte e belo, seu corpo formal está possuído pelo “mundo” das dores e opressões que se abatem ainda sobre as mulheres. O projeto estético e ideológico do poema dialoga por meio da metáfora do útero. Enquanto o projeto estético se estabelece pela matéria de poesia representada pela condição feminina simbolizada pelo útero,  o projeto  ideológico se  organiza por meio da presença de denúncia social da opressão e violência a que a mulher está submetida como portadora de um útero.

Considerações finais

Octávio Paz  no capítulo Poesia e Poema em O Arco e a Lira (1982),  faz uma descrição do poema, como espaço ancestral onde ressoa as vozes humanas de todo o mundo, como ensinamento e grandeza de nossa condição humana.


O poema é um caracol onde ressoa a música do mundo, e métricas e rimas são apenas correspondências, ecos, da harmonia universal. Ensinamento, moral, exemplo, revelação, dança, diálogo, monólogo. Voz do povo, língua dos escolhidos, palavra do solitário. Pura e impura, sagrada e maldita, popular e minoritária, coletiva e pessoal, nua e vestida, falada, pintada, escrita, ostenta todas as faces, embora exista quem afirma que não tem nenhuma: o poema é uma máscara que oculta o vazio, bela prova da supérflua grandeza de toda obra humana, (PAZ, 1988, p. 15).


O poema “vocação” dialoga com as ideias de Otávio Paes, na medida em que em seu poema ressoa a “a música do mundo”, representada pela denúncia poética da opressão feminina, é “voz do povo”, na medida que representa a voz das mulheres. Dialoga também com a ideia defendida pela poeta Ana Cristina Cesar, de uma poesia seca, dura, ríspida, violenta. Uma poesia   marcada pelo eu lírico feminino, uma poesia que não deve calar temas que são expressos nas vozes das mulheres, poetas atuais. O poema é um mergulho em uma escrita livre, à deriva, aberta ao diálogo sobre temas ainda calados, ausentes, escondidos, temas que abordam a condição feminina em suas contradições, violência, opressão. 

O texto poético apresenta o útero como representação do que é ser mulher e as expectativas que essa busca encerra. A mulher representada no poema é uma mulher que ainda não impõe ao seu corpo as regras que lhe convém, ainda luta pela autonomia do corpo que carrega um útero, espaço de dominação das várias instâncias sociais. É uma mulher presa ao peso do útero que carrega, que a predispõe a opressão, violência e a submete a um destino traçado pela sociedade em que ela vive. É uma mulher distante da idealizada por um imaginário social e patriarcal, representado nas capas de revistas, na TV e no cinema. 

O poema carrega imagem e sentimento, a imagem representada pelo útero e o sentimento representado pela denúncia que percorre todo o corpo do poema.  Gaston Bachelard (1985, p. 183) aponta como ato fundante da poesia, imagem e sentimento, que se fundem na fantasia artística para produzir o poema. Segundo Bachelard os poemas se comunicam com os labirintos do inconsciente por meio da porta dos sonhos e com a tradição por meio da porta da cultura. Ao entrarmos pela porta da cultura, encontraremos o estilo de época, as convenções do gênero, a ideologia que direciona o ponto de vista do poeta e as dimensões sociais que perpassam o poema. Se adentrarmos pela porta dos sonhos encontraremos as circunstâncias que convertem o phatos em imagem, nas motivações inconscientes que convergem para o discurso do poema

Para BOSI, (2003, p.44), ao analisar, interpretar um poema é importante que se entre por essas portas propostas por Bachelard, para obter uma análise e interpretação satisfatória do poema.


A porta que se abre para a tradição literária, por mais pistas de intertextos que faculte ao crítico, não deverá fazê-lo esquecer que cada poema novo, forte e belo é um ato diferenciado de elocução, ato de conhecimento e não mero re-conhecimento do que já foi sentido, imaginado ou dito. (BOSI, 2003, P.45)

O poema “vocação” se comunica com a porta dos sonhos, caminhando pelos labirintos do inconsciente coletivo das mulheres em que as palavras materializam as imagens de um sonho poético em que a simbologia do útero se faz figura maior do poema. Pela porta da cultura, o poema aponta o papel desempenhado pela mulher no processo social que envolve maternidade, sexualidade e o papel tradicionalmente reservado a ela como portadora de um útero. 

A mulher representada pelo eu lírico se rebela, grita, protesta, denuncia sua condição de ter um corpo subordinado por meio do útero a determinação da maternidade e da violência e servidão que vem junto com essa suposta “missão”, tarefa feminina. 


Referências

ARRAES, Jarid. Site profissional. https://jaridarraes.com/ acesso em 06 de junho de 2022=.

BACHELARD, Gaston. “Instante poético e instante metafísico”. In:  o direito de sonhar. Tradução de José Américo Motta Pessanha. São Paulo: Difel, 1985.

BOSI, Alfredo. (Org.) Leitura de Poesia. São Paulo: Editora Ática, 2003.

FREITAS, Angelica. Um útero é do tamanho de um punho. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

GOLDSTEIN, Norma. Análise do Poema. São Paulo: Ática, 1988.

HOLANDA, Heloisa Buarque. (org.) As 29 poetas hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

JUNG, Carl Gustav. Arquétipos e o inconsciente coletivo. Vol. 1. Petrópolis: Editora Vozes, 2014.

PAZ, Octávio. O arco e a lira. Tradução de Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

STRACK.  Hanna. A benção do ventre materno: o útero na simbologia da Europa antiga, do Egito antigo, na Bíblia e as consequências para uma espiritualidade da criação, hoje. http://www.hanna-strack.de/wp/wp-content/uploads/2011/09/A-B%C3%A9ncao-do-Ventre-Materno.pdf. Acessado em 5 de março de 2023.


Edilva Bandeira

03/05/2023

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