Abebé de bolso

Por Karina Limsi

Nascer preta em uma terra de pretensos brancos é, cotidiana e individualmente, cortar-se com uma navalha cega, costurar-se com a mão esquerda sendo destro e arrebentar os pontos com os dentes: não é só sobre sangrar, mas sobre a necessidade de sentir cada milímetro de dor e desamparo, sozinha, lutando para fazer sangrar, expurgando qualquer traço de doença, ejetando qualquer mísero pedaço de corpo estranho, por sua conta e risco, para mesmo na iminência de infecção e morte, fazer-se sã, mais forte, mais dona de si. Tarefa árdua que passa desapercebida por olhos desimplicados com a desgraça e a injustiça que abatem o alheio. 


Encarnar em um corpo racializado como é o corpo preto significa encarnar para, simultaneamente, escrever e ler um livro de páginas escuras, de capa dura esfolada por chicotes verborrágicos, de orelhas carcomidas pela ofensa. É encarnar para escrever, ler e ser um livro de bolso, fácil de ser esquecido no fundo da mala, mais propício a invisibilizações do que a enaltecimentos. Quem está fora da tarefa de escrever esse livro, longe da intenção de lê-lo e apartado da obrigação de sê-lo, crê que não faz diferença a cor da tinta que se usa pra grafar no papel escurecido a narrativa de uma diáspora sem começo ou fim – de que orla saíram os primeiros e em que praia aportarão os que ainda são escravizados mesmo após tanto tempo? Creem, inclusive, que qualquer palavra derrubada na superfície do papel-corpo pode contar a história dos primeiros povos que na fila dos privilégios foram e seguem sendo os últimos, quando muito. 


Encarnei nessa e para essa tarefa, no berço de uma família de múltiplos delineamentos – indígenas, nordestinos, sertanejos e não sei mais – em que os pretos quase sempre fizeram de conta que eram pardos – pardo é papel, papel escurecido, mas não tão escurecido quanto o papel do livro de bolso de que falei antes. 


Os cabelos das mulheres conheciam cedo as cerdas das escovas que puxavam seus pensamentos para cima, para além dos olhares de desaprovação, ocultando coroas suntuosas de reinos distantes. Besuntado em óleo de lavanda, cada cacho ou carapinha virava pedaço espigado de coisa alguma, sem vida, mordido por ramonas que escondiam uma beleza despadronizada. Aos homens pretos, bastava que fossem dormentes, trabalhadores, pais de família honrados, honestos exemplares que de tão submissos a outros homens pardos ou pretensamente brancos, submetiam as mulheres pretas a seus caprichos e jugos. Homem bom pra se querer era homem branco, do olho azul – dizia minha avó – mas se o homem preto fosse trabalhador e honesto, já estava de bom grado – e se fosse seu filho, então, mesmo preto, valia mais que suas filhas pretas. Nunca entendi e não entender, naquele tempo, foi o que me salvou. Um espelho já resolveria o problema de minha avó, o meu, o dos pretos e pardos de minha família. Um espelho pra se olhar e ver, enxergar pra além daquela parca ideia de existência.


Na escola foi que entendi que eu era neguinha, um tipo de preto específico, desprovido de força e autonomia, eu achava. Eu era neguinha e ser neguinha parecia ainda menor que ser preta, pretinha. Sim, no diminutivo, não porque era criança pequena, mas porque era vista como pequena em tudo mais que os pretensamente brancos e brancas se percebiam gigantescos. Apanhava todos os dias na saída porque era neguinha. Apanhava de um menino branco de olho azul e praguejei as palavras de minha avó: “homem branco de olho azul nem presta!”. Um dia, minha irmã, outra neguinha, foi a porta da escola e ensinou ao menino branco – de uma pretensão que hoje vejo que escondia outras coisas – que tocar em mim novamente seria sua sentença de morte. Brotou em minha mão um espelho que me ajudou a esquecer o que minha avó dizia, onde vi o reflexo da neguinha que era minha irmã e  nela a força e a autonomia: neguinha era um corpo-coisa que incomodava e causava desejo, de ser, de estar, de possuir e disso eu não podia mais me esquecer.


Já mais moça fui recebendo títulos que, como as palavras de minha avó, não entendia, mas não entender já não me salvava e eu nem queria mais ser salva. O espelho em minha mão foi ficando cada vez mais brilhante, cravejado de contas e búzios, ouros e marfins vindos de outrora, porque depois de ver a neguinha que era minha irmã fui sabendo mais sobre outras neguinhas, enxergando no reflexo do espelho como realmente eram os pretos e pardos que eu conhecia – do que e para que eram feitos de verdade. Cada vez mais eu esticava a mão pra olhar pra mim mesma, pra ver no espelho refletida a imagem de uma porção de neguinhas, neguinhos, pretos, pretas, que vinham com sons de pés batucando o chão, sons de ondas do mar rompendo corais, corações, colorais. 


Cresci e envelheci um tanto, de espelho na mão, livro-corpo de capa cada vez mais dura, lindo e antigo por dentro, invejável pela resistência às intempéries. Meu livro-corpo de páginas escurecidas, cada vez menos pardo, cada vez mais indócil, cada vez mais consciente de sua tarefa, seu tamanho e sua força, era adornado de curvas de preto, tomo e miolo tão empenhados quanto as mucamas evitando as camas de seus senhores. Ele trazia em si história de preto, boca e nariz de preto, além daquelas orelhas de que falei antes. Também tinha ouvidos que queriam sempre ouvir música de preto, olhos que enxergavam contornos em preto, e muito embora acordasse e dormisse sob um teto católico, o livro-corpo queria falar outra língua, escrever, ler e ser a narrativa a partir de outro idioma e tinha espírito: espírito que só podia caber em religião de preto. Meu livro-corpo se complexificou a ponto de não mais ser um singelo livro de bolso, ao mesmo passo que o espelho em minha mão se requalificou em portal para outros mundos, sendo preciso unir as duas coisas, forjar um eu espelho que também fosse livro, um livro refletor de memórias e certezas.


Foi difícil, como quase tudo que me ocorreu desde que encarnei em um corpo racializado, mas fundi num artefato o livro e o espelho, num tamanho que o fizesse prático como um livro de bolso – para contar minha história a qualquer um que tentasse reescreve-la com outras palavras, outras cores e sons – e o fizesse notável a ponto de ser impossível ignorá-lo, como é impossível ignorar um espelho que reflete tudo que se põe em sua fronte. Fiz-me um abebé, de bolso e apesar de ter aumentado a dor – porque enxergar a ferida com os próprios olhos torna tudo ainda mais doloroso – ter um espelho que é meu e que contém a narrativa que só eu posso contar, facilita o cortar-costurar-arrebentar-sangrar a vida preta.


Volto a dizer: Nascer preta em uma terra de pretensos brancos é cortar-se com ferramentas gastas que nem mais deveriam ser consideradas ferramentas, costurar-se mesmo diante de limitações físicas que nem deveriam ter que ser superadas, arrebentar agressivamente os laços que nos ajudariam a sanar as feridas, para expelir, abortar, excretar o que não é nosso, o que fora intrusivamente enfiado em nossas entranhas, gravado em ferro quente na pele de nossas ideias, manchando de mentira alva a verdade escura que nos constitui. Um espelho resolvia e resolveu. Um abebé, espelho de entidade maternal que te confronta consigo mesma enquanto impede o teu inimigo de projetar em ti o que nele é ruim. Um abebé de bolso não é qualquer espelho: é o meu. Os nativos – que não sem pretos nem pardos, donos dessa terra pr’onde me trouxeram quando me arrancaram da minha terra – assim como eu, sabem o que os pretensamente brancos gostam de fazer com os espelhos que não são nossos: nos fazem olhar através dele e enxergar em nós o livro que não escrevemos, não deveríamos ler nem ser, pra depois nos guardarem pra sempre no fundo de seus bolsos.


Karina Limsi é escritora, cantora, compositora e produtora cultural. Publicou seu livro de estreia "Contos dos que plantam árvores" (2015) pela Editora Patuá e participou das antologias “Ilhados” (2019) pela EB Ações Culturais e “O vazio não está nem quando é silêncio: Vozes femininas na literatura” (2020) pela Editora Mireveja.

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